Christina Oiticica: "Caminho Peregrino" - A Artista, a Natureza, O Caminho

Inventiva, inspirada, criativa!

Durante o período de dois anos, de maio 2007 a maio 2009, Christina Oiticica estará expondo telas compostas em parceria com a Natureza na galeria do Relais Château El Peregrino, em Puente la Reina, etapa do caminho de Santiago.

A artista compõe suas telas em diferentes locais do caminho: usando o relevo de pedras, a intervenção da chuva, da neve, a cor da terra, pigmentos naturais e cera. Uma vez compostas, elas são “plantadas” na terra para serem recuperadas meses depois.

Desse processo original, que combina, mistura, land art e pintura, emergem telas simbólicas e abstratas que captam e irradiam a energia do lugar em que foram compostas.

O fato desta exposição estar sendo mostrada em Puente la Reina, para onde todos os caminhos de O Caminho convergem, tornando-se um só e neurálico, não é acidental - a proposta proposta pela artista é mostrar aos peregrinos um outro caminho, um caminho marcado por seus passos, suas efetivas esperanças, suas afetivas memórias.

Neste processo em progesso, Christina segue a inspiração das palavras do escritor francês André Gide: “A arte é uma colaboração entre Deus e o artista, e quanto menor a intervenção do artista melhor.”

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"As Quatro Estações" by Christina Oiticica
"A suplicante"

©Alexandros Papadopoulos Evremidis*

Inventividade e criatividade - são palavras que, após se acotovelarem com tantas outras, ganham corpo, volume e significado. Sobressaem, marcam presença e se impõem como atributos pilares da configuração artística de Oiticica ...

... que, há uns três anos, após perscrutar e pesquisar a intimidade mais recôndita da casa "di Venere", havia nos assombrado e encantado com suas cândidas revelações acerca da gênese e do habitat da pérola/matriz ... e que pouco tempo depois nos arrastou para os sensualíssimos delírios dessa mesma Venere, já adulta e em plena floração do seu gineceu, a com mil e uma bocas sofregamente sorver o néctar dos mistérios do seu complementar.

Agora, Oiticica recorre à natureza maior e dela se socorre (não é justo em sendo esta Mãe e Mariz e Geratriz?!) para, em cúmplice conspiração, criar a quatro, muitas!, mãos. Acompanhe-me nessa visão, leitor:

Vemos nitidamente a artista solitária em uma solitária floresta situada nas encostas dos Pirineus (a raiz "pir", sintomaticamente, sugere fogo).

De túnica, como convém a seu "momentum", ajoelhada, pernas abertas, seio desnudo, exposto às carícias do elementos, braços levantados, olhar ardente, mareado e ao mesmo tempo em chamas, apontado para a diagonal frontal, ela, qual hiéria e/ou bruxa, gesticula ritualisticamente, profere vocábulos catalisadores, conjura e conclama as forças e os daemons da natureza - a terra, a água, o ar, o fogo, a luz, a escuridão das trevas, a chuva que cai e corre e se levanta e torna a cair e correr, o vento, o calor, o raio, os animais selvagens/silvestres. O Eros e o Thânatos!

Como se divindades primordiais fossem (e não o são, par excellence?!), deposita no colo de cada um deles suas crias/criações, simula amorosas oferendas e dolorosos/doloridos sacrifícios. Humana, frágil, em humilde súplica, pede que as aceitem e as acolham e delas cuidem com o mesmo carinho de sua genitora, ela mesma. Que com elas interajam, cada um de conformidade com suas físicas e químicas propriedades, para o bem e para o mal. Sendo que este último prejudicado está por desconhecido ser, e inexistente, na physis - toda, sempre, boa em sua simplicidade, clareza, distinção e estável permanência, em sua imutável, por perene, lei de causas e efeitos e nada mais.

Exposto o exposto, claro fica que não se trata de um abjeto e desnaturado abandono, uma exposição, como é comum mães (mães?) largarem neonatos ao largo ou em lixeiras - é uma entrega temporária, desejada e querida, como quem confia um bebê a uma loba para ela amamentá-lo ou a um centauro para ele pedagogá-lo - uma e outro, depositários fiéis. Doze meses das quatro vivaldianas estações transcorridos, com o coração aflito saltando no peito, repleto de ansiosa expectativa e de esperançosa saudade, mas também confiante nos avatares, Oiticica voltará para, hieratica e cerimoniosamente, recolhê-las, como quem colhe a colheita do plantio - alegre algazarra dos anima e, por que não? também dos inanimados (não dançam os elétrons a dança nupcial, nas heisenbergianas regiões de máxima probabilidade?), no céu e na terra.

No ruidoso silêncio daquele dramático instante, exalando gratidão e exultando em êxtase, juntamente com deuses e mortais, a humana artista divinamente inspirada irá deixar-se surpreender e maravilhar com as tantas e inusitadas intervenções dos "artistas naturais" - seus parceiros, cúmplices e conspiradores nessa transcendental experiência que é a arte e, pour cause, a vida. Irá, então, pesquisar e estudar-lhes (aprendendo, sempre aprendendo com os sábios) as ações e as reações e as marcas e os vestígios operados - as feridas e as cicatrizações. E após amorosamente reprocessar e recondicionar seus objetos e suas telas (é deles e delas que estamos tratando), Xhristina Oiticica (com X por ser múltipla e a um tempo enigmática incógnita), finalmente, virá doá-los à nossa crônica carência estética e afetiva - destinatária final das suas buscas, dos seus encontros e das suas comunhões. Do nada, para a eternidade!

Cum laude!

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Rio de Janeiro 2005

©Aexandros Papadopoulos Evremidis = crítico


"CAMINHOS RECOLHIDOS" - pinturas, objetos e instalação, de Christina Oiticica.
As muitas bocas de Oiticica.

©Alexandros Papadopoulos Evremidis*

Antes de mais nada, deixemos claro - no escuro dos cantos, também nós recolhemos sinais: cochichos e rumores de que Christina Oiticica não seria uma grande artista, nem mesmo uma medíocre artista; apenas uma oportunista que estaria pegando carona no sucesso do marido, o internacionalmente festejado escritor Paulo Coelho.

Para essas vozes obscuras dizemos que se recolham tranqüilas. Oiticica já era artista antes de Paulo Coelho ser o que é, e o será muito depois dele, já que, segundo indicadores estatísticos, dele poderá ser a executrix. Se, no "durante", ele desviou e e resvalou para o apolíneo, chegando mesmo a arranhar a perigosamente ingênua mistificação de quem faz chover e ventar - pueril fantasia de capa e espada - , ela não deixou por menos - seguiu os passos dionisíacos da celebração da vida, com toda sua luz e cor. Passionalmente.

Por outra, se é verdade que "atrás" (abominável machismo, esse da tal sabedoria popular: por que não "ao lado"?) de um grande homem, há sempre uma grande mulher, aqui fica patente que havia e há uma mulher MAIOR. Mas o assunto agora não é Paulo Coelho, que, a seu devido tempo, também será enquadrado, esquadrinhado e tomografado - o assunto é ela, a simples e re/a/colhedora Christina Oiticica - consumada artista, mulher feita (só não diremos perfeita para não afrontar os deuses com a hybris e atrair sua ira - por muito menos, Athina metamorfoseou a prendada Aracné em aranha fiandeira).

Posto isto, lembremos que, no passado, Christina Oiticica se entregou toda, direta e insofismável - esta última palavra no caso dela é valioso passe-partout -, e se submeteu a toda sorte de experimentalismos artísticos, dispondo de seu corpo e de sua alma como se atelier ambulante e laboratório de ensaios e pesquisas na busca da edificação de um idioma que lhe fosse proprietário e inalienável, personalizado. Agora, avaliando suas criações mais recentes, pode-se sem grandes riscos categorizar que ela chegou lá, id est, atingiu a plenitude artística e, como justo corolário, também, o amadurecimento pessoal, esse, da sua natureza feminina - cálida, úmida, receptiva. Intuitiva. Uma mônada superior. Acima, portanto, do bem e do mal!

É ponto pacífico que as obras de Oiticica não podem e não devem ser apreciadas à luz dos cânones formais, tradicionais em arte. É preciso estar despido do pré-concebido para lhes aferir o juízo de re-significação, já que, na maioria, ilustradas por instalações, envolvem aspectos complexos de expressão artística, atingindo por vezes a inquirição existencial e filosófica sobre a natureza do ser, do nada, do tempo, do eterno feminino, da sexualidade, da morte e do renascimento - matérias tangentes da moira dos vivos.

Dentro desse espírito, ela nos encantou, recentemente, com a sua casinha do tempo. E onde ficaria essa casinha? Oiticica teve como ponto de partida da sua reflexão a pintura "O nascimento de Vênus", do pudico Botticelli, que a idealizou mais como Maria do que como Afrodite - consubstanciação dos esporos do Chronos. Na representação, ela vem sendo trazida com a devida "pudenta" sobre a meia concha-casa de uma ostra.

Daí em diante a associação é criativa. A artista desceu às profundezas dos mares para buscar na bivalve ostra (o cerne da boca aí já germinava) a casa inteira - morada do tempo. E o que presenciou a deixou assombrada - um grão de areia ou um corpo estranho qualquer, uma sujeirinha, enfim, que entre na intimidade daquele refúgio, é paulatinamente envolvida por uma secreção que, transcorrido o tempo, se enrijece e torna o que chamamos de pérola - obra de arte da natureza, jóia no colo das mulheres e, espero, também dos homens.

O que fascinou Oiticica, entretanto, foi o tempo, o intervalo entre a invasão e a formação da arte, o tempo, portanto, da maturação da pérola e, por analogia, dela própria como mulher e artista. Mas também de toda e qualquer outra maturação - do amor, da amizade, do fruto, do sexo, dos espermatozóides que, após a penetração e a ejaculação, céleres invadem o útero e as trompas para romper a crosta do óvulo-pérola, viver o tempo do amadurecimento no aconchego do útero-concha-casa-do-tempo e, após nove luas - outro período! -, dela sair na forma de um novo ser. Dar à luz a luz dos nossos olhos. Um novo tempo. "Sabe, eu sou muito ligada nas coisas de mulher", ela me disse comovida. Estranho seria se não fosse. Mas esteja ciente, Sensível Artista, também nós, homens, somos muito, muitíssimo, ligados a ... essas coisas de mulher.

Caras e bocas? Não. Corações e mentes? Tampouco. Retirando, porém, o segundo item do primeiro binômio e o primeiro do segunddo, temos "bocas e corações" - a dorsal e crucial e axial da atual exposição de Oiticica no Belas Artes, Caminhos Recolhidos, que já esteve em Bruxelas, Berlin e Paris, sendo que, nessa última capital, a quase totalidade das 30 peças foi arrebatada no ato.

O "recolhidos" fica por conta de cartões de visita, de embarque, de crédito, e de tiquetes disto e daquilo, que ela recolheu ao longo de 10 anos de viagens e que agora usou para preparar colagens, objetos compostos, instalações. Embrulhos que embrulham sua memória afetiva. Um deles, entretanto, um cartão telefônico alemão com uma boca estampada num dos lados, que parecia lhe sorrir com ironia ou cumplicidade, foi o catalisador.

E então as bocas, com seu simbolismo contundente e abrangente, se multiplicaram e invadiram as duas galerias do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Bocas abertas, bocas semi-cerradas, bocas sensuais e carnudas, bocas texturizadas, uma explosão de forma e cor, volume. Bocas molhadas, febris, ardentes, desejosas, suplicantes, devoradoras. Bocas que falam, cantam, declamam poesia, blasfemam, beijam, rezam, languidamente se lambuzam e lambem/sugam a pérola e/ou o sêmen. Bocas que, na vertical, parecem vaginas, confidenciou-me Christina. E precisava?! Estão lá duplamente expostas e generosamente doadoras. Órficas e orgiásticas. Diz sintomaticamente a boca do convite da mostra: "Fecha a noite/E o vento mudo/Beija/O céu da boca/". E mais não diz porque tudo já disse.

Para complementar e temperar tanta sensualidade, só as muitas paixões dos tantos corações e sua semiótica deliciosamente romântica, adolescente e inocente - corações-filhotes vermelhos, como se doces, confeitos, repousando no ninho (carbonizado?), à espera do coração maior, quem sabe, da Alma do Mundo; corações adornados com a coroa de espinhos, perdão, de arame farpado; corações que falam de amores e também de dores, de temores e terrores noturnos; e ainda corações-rosáceas que prometem "Depois da minha morte/Farei cair/Uma chuva de Rosas".

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Rio de Janeiro 2002

©Alexandros Papadopoulos Evremidis > crític > Email


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