"Carlos Heitor Cony: Quase Cony", de Cícero Sandroni / Relume Dumará.
Um quase romance!
©Alexandros Papadopoulos Evremidis*

Ao manusear o livro ficamos logo sabendo tratar-se de uma encomenda da Prefeitura do Rio que destarte - Perfis do Rio - se propõe a homenagear e divulgar seus recursos humanos. Num primeiro momento, ficamos também assaltados pela suspeita - será mais uma sinecura do gênero com que os papas guerreiros dotavam seus protegidos e, por vezes, até seus desafetos, para assim cooptá-los e cabrestá-los? Não que os dois personagens, Sandroni e Cony, (sim, sim, ambos são personagens do dito "quase romance" - narrador e narrado, ou, no caso do último, "perfilado", se preferirem) não se fizessem merecedores de tal honraria. O que acontece é que por força do escabroso descalabro ético, que, tornando-se norma, chutou pra escanteio a exceção, a dúvida assume caráter de vício patrulhador involuntário e mecânico. Mas não, o histórico e a personalidade de um e de outro desautorizam a menor, ainda que eventualmente bem-intencionada, insinuação, sabido que é que no tempo dos porões por diversas vezes eles arriscaram a liberdade, e até a própria vida, o que não é pouco nem para qualquer um; e muito menos para quem quer, mas sim para quem pode. E se por isso não fosse, o prazer auferido pela primeira leitura, que, aí sim, nos vicia e nos subjuga a mais uma e mais outra releitura (por enquanto!), é de tal forma qualificado em intensidade e qualidade, que silencia até os mais acirrados radicais.

Logo no pórtico interior, Sandroni humildemente irradia o aviso de que não há aviso aos navegantes - não esgotará Cony, tarefa impossível diante de tamanho monstro sagrado, não trará à luz novos elementos clarificadores de Cony nem tampouco fará revelações de dados apócrifos. Mesmo porque o tudo que aos admirados leitores (não ao psicanalista) do Cony interessa saber já é de domínio público - saiu em artigos e reportagens; e a fração maior desse tudo, quem com língua afiada a seu respeito disse, em entrevistas e depoimentos, foi o próprio Cony - autofágico, depreciador do eu, cruel e impiedoso consigo mesmo. (Nesse sentido podemos afirmar que Cony não precisa de inimigos - os tem em quantidade dentro de si, razão porque sua luta é 'ele contra ele mesmo').

Sim, percorrendo os labirintos existenciais, Cony tomou ciência do quantum de perversidade e de sofrimento inerentes à esquizofrênica natureza com que somos dotados pela criação, detentora da chave de que nos fala o infernal Rimbaud. O restante está em seus ousados, catárticos e expressionistas livros que não mentem nem desmentem - dolorosamente as fraturas expõem; e, agora sim, neles há farto material para os estudiosos e analistas do totum da psiqué conyana e pour cause também da humana. Qual Prometeu ele mergulhou nas trevas e roubou o fogo, para, à luz dele, nos desnudar e revelar a nós mesmos. Contundente e despudoradamente!

Dizíamos que dizia Sandroni não pretender uma biografia e tampouco um pleno perfil; esgotar Cony nem pensar. Descartando uma e outra modalidade, ele sem querer querendo acertou no tertium - um romance! Um romance? espantar-se-á o leitor. Sim, senhor doutor, um romance (latu sensu, que seja)! E que avassalador romance! Emoção pura. E humor, muito e sutil humor! Não querendo ou não podendo se expandir horizontalmente com o aporte amplificador de "novidades", entregou-se à prospecção vertical, aprofundando o até aí sabido apenas superficialmente. Numa assemblage literária pinçou e associou fragmentos não-artísticos - os tais orelhões de Cony infante, sua cómica dislexia, o bunker em que tranformou os subterrâneos da mesa - a informações genealógicas e biográficas e análises literárias; e, num corte epistemológico personalizado, enredando-os, qual laboriosa e paciente aracné, conseguiu o feliz paradoxo do perfil transmutado em romance. O engenho é genial - de cada tópico fez ele um mini-romance e das partes um conjunto coeso e sólido, atraente e sedutor.

As ferramentas para tal Sandroni juntou ao longo de uma vida dedicada ao estudo da humana civilização - uma erudição clássica invejável, sensibilidade, isenção, finesse no trato da linguagem - cada palavra colocada ritmicamente ao lado da sua consonante sinfônica para produzir a harmoniosa melodia. E só! Nada de intrincados góticos, arabescos floreios, truques, trompe l'oeil, malabarismos, queima de fogos e saltos mortais. Sandroni vai direto à seiva e com simplicidade e fluência nos leva, não, arrasta e sacia nossa sede e nossa fome com o instigante espetáculo da aventura humana chamado Cony. Console-se, leitor, porque falando de Cony, Sandroni fala, e amorosamente, um pouco de cada um e de todos nós.

E aqui termina o pouco do muito que poderíamos dizer da obra de Sandroni. Do Cony, nós apenas destacaremos que, à parte todos os seus outros valores, ele nos carrega sobre suas asas e sua espinha dorsal - O Ventre, Pilatos e Quase Memória, três obras-primas que, para sermos fashion, as declararemos um "must" pertencente ao patrimônio da Humanidade. A história de Cony é basicamente a paradigmática história da superação humana do humano. Seu instrumental é energia, vitalidade e sensualidade - uma libido desmedida que dele fez um semeador incansável. Encha-se de esperança, leitor, há dela uma faísca em cada um de nós, santos ou demônios, evergetas ou assassinos, genocidas.

Uma última palavra: enfatica e categoricamente, afirmamos que não tivesse Sandroni escrito uma única outra linha sequer, só por esse seu romance Quase Cony, ele já faria jus ao louro! Nem Cony, escrevendo sobre Cony, por suspeito, faria melhor!

Clique AQUI para ler texto que sobre Cony escrevemos em ocasião anterior.

Rio de Janeiro - 2003.

©Alexandros Papadopoulos Evremidis > escritor crítico > Email


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