Poesia visual em movimento
ou
O mico que ela me fez pagar ...
©Alexandros Papadopoulos Evremidis*
Com sua pele alva, os cabelos cor de trigo maduro e os olhos penetrantes, essa moça, Yuli Geszti, é toda mutante - quando você pensa que é uma, já é outra. No casulo do silêncio, que a cerca e envolve, ela é toda alquimista e prestidigitadora, uma mágica maya que transmuta os pareceres do ser, tira coelhos da cartola e faz levitar. O que dizer do seu caldeirão? Dizer que suas criações nos fazem sentir como crianças que confrontadas, pela primeiríssima vez, com os ardis de um mago, são subjugadas pela confusão e pelo encanto. Epígona de Euclidis, devota-se, Yuli, à pesquisa, descoberta e revelação subliminar das propriedades e dos atributos subjacentes às formas fundamentais que regem a arquitetura do cosmos e de sua vida latente. E faz isso por meio de suportes e instrumentos elementares - uma tela, um lápis e algumas poucas cores para encorpar e incorporar (receber a vida que Yuli lhes soprará nas entranhas).
Demiurgicamente, Yuli, tange, risca e tinge a dramática superfície bidimensional, como se ali começasse o chasma entre as luzes e as trevas que a habitam. Subitamente, e como se seu pincel varinha de condão fosse, transcendendo suas limitações estruturais intrínsecas, ela intervém, inscreve, macula e faz surgir a terceira dimensão, a que confere substância e volume, presença e existência, uma alma - um "dasein", um ser e um estar no mundo e no tempo, que Yuli gostaria de nos doar e povoar. Torna-se Yuli, assim e então, uma formidável escultora de ilusões sensuais, limítrofes do erótico, e com a poderosa mais-valia de suas criações estarem vibrando e respirando - pulsa-lhes, na camada mais íntima do tecido nuclear, um coração aconchegante e acolhedor.
Na verdade, não é para lhe tecer encômios que escrevo estas poucas linhas, que disso ela prescinde e para isso eu chamo o inequívoco testemunho das suas obras, mas para dizer do mico que Yuli, depois de tantos anos de estudos e experiência de vida, me fez pagar: há algum tempo, após "subir a rampa" de acesso ao Centro Cultural Cândido Mendes - Ipanema, notei na parede da direita um quadro que nem quadro era, mais parecia um banner desfraldado, livre e solto, ao sabor dos ventos que ali, naquele acanhado e claustrofôbico corredor, não sopram - e no entanto ele se mexia, e o que nele estampado havia, ainda mais - parecia estar possuído por despudoradamente cálidas, sensuais e insinuantes ondulações, como que evocando vagas de calores e umidades a subir e descer em revolto mar interior. Lembrei-me dos tempos em que eu tomava LSD, para perscrutar os territórios subterrâneos e o sótão do meu ser, e, impressionado, devo estar "viajando", pensei.
Mas afinal, fisicamente, era possível que ali houvesse movimento e conseqüente vida? Era aquela uma arte cinética por excelência e por isso dispensava artefatos e artifícios? Sentindo-me um idiota, variei de ângulo, experimentei as diagonais e as radiais, ajustei com aproximações e distanciamentos meu foco visual - tudo em vão, não conseguia me libertar da alucinante captura exercida pelas engenhosas armadilhas de Yuli. Após alguns minutos de constrangimento, não resistindo ao sirénico apelo, hipnotizado e magnetizado, sonâmbulo mesmo, aproximei-me hieraticamente daquela singela e despretensiosa pintura e, liturgicamente, no intuito de conferir, apus minha mão sobre ela. Acariciei-lhe o fundo e deliciei-me com as elevações, seu volume, sua cor, seu imaculado e inconsútil corpus que, eu sabia, não existia, mas, ao mesmo tempo, ali estava a arder na sedenta palma da minha mão, vaso comunicante do meu coração. Dominado por sedutor fascínio, foi aí e foi então que levei um choque radical e fui atirado de regresso para a minha infância e tornei a ver o mundo com a inocência dos olhos de uma criança - é esse um dos mais poderosos atributos da arte, da qual Yuli Geszti, artista consumada, é sacerdotisa e mestra. Ela não apenas vai fundo, ela rompe, fura o fundo e, obsessiva, vai além, como se para esgotar o que ela sabe ser inesgotável.
Tempos passados, encontrando Yuli por acaso numa exposição sobre a fase negra de Ivan Serpa, interpelei-a a respeito, tangendo a sua corda mais sensível, e daí a mais frágil: Queria reinventar a geometria? "Enredei-me em minha própria rede e não consigo mais encontrar a saída", confidenciou-me ela, com cândida e comovente melancolia, para incontinenti, rediviva, e em cúmplice ardor, acrescentar "E o pior, ou o melhor, não sei se quero sair". Depois, os que ignoram e desconhecem as agonias dos artistas, admirados e desconfiados, perguntam: "Para que serve a arte!?" Ah, esqueça. Veja, isso sim, as criações de Yuli (que não responde, mas com clara luz e cor aclara) e delire lisergicamente, libertando-se dessa instintiva, sim, mas ainda assim infeliz pergunta.
Rio de Janeiro 2003
©Alexandros Papadopoulos Evremidis = > escritor crítico > Email
Fotos: divulgação.
O enunciado acima seria perfeito, mas ainda assim a substancial síntese não faria jus à Yuli. Dizer "pintura da mais alta qualidade" soaria vã pregação retórica. Entretanto, desumano seria não ceder à avassaladora pressão de alguns adjetivos que, por mais óbvios e contraditórios que possam parecer, se impõem - a arte de Yuli é abstrata, com um quê de sutil representação subjacente, formal, de precisão científica, concreta, do tipo sensível, sensibilíssima!, geométrica, ilusionista, do tipo mágica, óptica e cinética, sensorial, do tipo táctil (e o prodígio - sem textura alguma!)... Falando em sensorial, lembro do sensual e mais ... espere, pode uma arte com esses atributos chegar a ser erótica?! Pôde e portanto 'podeu' :) Senão, como entender esses generosos volumes recurvos, as insinuantes reentrâncias e as rijas saliências, os acoplamentos intersticiais, sem por eles se deixar seduzir?!