"Projeto Zona Instável - Cavalariças no Parque Lage", by Ricardo Ventura, Afonso Tostes e Paulo Climachauska.
Parque Lage - cavalariças exorcizadas.

©Alexandros Papadopoulos Evremidis*

Um conto de fadas? Um romance da cavalaria medieval? Um homem maduro e rico conhece uma moça jovem e pobre e sente paixão fulminante. Ela é cantora lírica e, portanto, itinerante. Ele a segue por todos os palcos do mundo, no front do gargarejo. Manda flores, bombons, jóias, talvez, roupas íntimas de seda rendada, perfumadas! Tudo para seduzi-la. O golpe final e irresistível - ele constrói não uma mansão, e tampouco um palacete, mas um templo de amor, no coração da mata atlântica, de dimensões do tamanho de sua adoração por ela. E isso, ali, aos pés do Cristo, ou em seu prosáico sovaco. No ádrio, uma piscina. Os erotômanos a imaginam cheia de champanhe ou, mais passionalmente, vinho tinto, onde os dois, nus, se entregam aos gemidos da luxúria. Ali ao lado, os puros árabes, fêmeas e garanhões, elegantes em sua etérea beleza, com que ele também agraciou a sua amada e para eles edificou artísticas cavalariças, relincham fogosos.
Corta! Corta! como Átropos o fio de nosso viver corta, como se para dizer, e diz, "memento mori", lembre-se, você deve morrer, que a vida e com ela o amor fugidios e efêmeros são, perecíveis mesmo. Nosso casal e seus cavalos são devorados por Cronos, o templo e as cavalariças ficam à mercê da corrosão temporal. Décadas depois, o templo vira escola de artes, nos moldes do Ateliê Suiço, de Paris, onde os alunos, "filhos de Piaget", desenham, pintam e bordam em liberdade. Sucessivos curadores, perdulários, não gostando do cheiro de bosta de cavalo, que o tal abobalhado general preferia ao do povo, e não querendo sujar as mãos, ignoram as cavalariças, cheias de estrume, insetos escatófagos e almas penadas - isso, "se las hay". Até que "fiat lux", a luz se faz e alguém começa a enxergar que, se os sem-terra derramam seu sangue para ocupar terras improdutivas, para nelas plantar o mínimo do mínimo, e os sem-teto, edifícios desocupados, para pelo menos ter onde cair mortos, era crime manter "aquilo" ocioso.

Lembrou-se então de Héracles, desviando o riacho para limpar os estábulos de Áugias, e engrenou a turma da pesada, que literalmente pôs a mão na massa e empunhando vassoura, esfregão, balde de água e sabão, procedeu à limpeza. Na hora de caiar, foi a vez dos pintores, de parede!, mostrar sua arte. Mas ainda faltava exorcizar o terreiro para espantar as penadas almas. Chamou-se então a turma dos pajés - três artistas foram convocados para a difícil missão: Ricardo Ventura, Afonso Tostes e Paulo Climachauska. Como se num reality show, os três ficariam trancados por x dias e expulsariam os intrusos (re)ocupando o espaço. Só que, ao contrário dos big bros, eles não seriam filmados e espionados, violados em sua intimidade. Ocorreria tudo em segredo. Ao final do prazo, aí sim, eles abririam os portões e nós, após ver, diríamos "agora sabemos o que vocês andaram fazendo durante os x dias".

"Meio Menor Mínimo" de Ricardo Ventura - a arte de estar dentro e fora ao mesmo tempo!

Da soleira do "hall", já nos deparamos com um monstro, sagrado, é claro!, que nos impressiona com seu gigantismo, na verdade, uma construção monumental. E como uma construção monumental caberia num simples hall de cavalariça? A arte tem esse poder mágico de nos fazer ver entidades inexistentes. Imaginamos então Ventura em seu primeiro dia de reclusão, a olhar perplexo para o chão, paredes, teto. Havia um espaço ali, e repleto de memórias animais, paixões humanas, dramas e tragédias, cheiro de esterco. Como se relacionar com ele? - questionava-se ecoando Lúcio Fontana com suas angústias espacialistas. Como capturá-lo e domesticá-lo e, ordenando-o, torná-lo concreto e palpável? Como conferir-lhe dimensões aparentemente maiores do que as que ele já possui e ainda por cima esculturais?

Reduzindo-o! Foi o que Ventura fez. E para isso, como autêntico maçom, serviu-se da clássica medida de ouro, formulada pelo arquiteto romano Vitruvius, mas que gregos e troianos já conheciam. Reza ela que alguns números se harmonizam melhor com estes do que com aqueles, que existem proporções perfeitas, sendo a ideal a que dita que a parte menor está para a maior, assim como esta está para o todo, consubstanciada na equação a/b=b/a+b. Munido disso e de seu feedback arquitetônico, Ricardo mediu, calculou, escalou, reduziu e no centro do espaço levantou com madeira compensada uma espécie de castelo, um templo, uma catedral, um pagode budista. Uma pirâmide, um zigurate, Torre de Babel?

Seja como e o que for, obra estruturalmente concebida como a quadratura da cruz grega em sua fundação, tem a base romanicamente sólida e robusta das basílicas e o alto com feições góticas e pitadas barrocas. Altamente eclética e ecumênica, agradaria aos construtivistas russos do início da "experiência", embora sendo constituída de materiais elementares orgânicos - quase in natura. Apoiada em cima dela, encontra-se uma segunda catedral ainda mais reduzida e em cima desta uma terceira, menor, e em projeção ad infinitum. Não bastassem essas, as paredes laterais são encimadas também por catedrais, reduzidíssimas - quase miniaturizadas, claro, guardadas as devidas proporções, votivas ou ex-votos, enfim! Cabalisticamente, há sete delas de cada lado na primeira camada, como os dias da semana - 1/4 do lunar; duas de quatro na segunda, como os pilares de uma casa estável; e duas de três na última, a tríade - pai-mãe-filho, a triangulação do perfeito, razão porque abaixo do três não mais há vida, no sentido arquetípico particular que aqui lhe queremos conferir. Todas réplicas fiéis da básica.

A paredes frontal e posterior de todas elas são equipadas com janelas redondas sem vidro, sendo que, postando-nos atrás do templo e olhando para o orifício básico, nosso olhar, inscrevendo uma diagonal ascendente, atravessa a janela do segundo e vai dar direto na janela em forma de roseta da metope da cavalariça e daí pro céu, alinhando-nos com o sol, a lua e as estrelas, o infinito. Conjunção desejável, que, se não intencional, é "ben trovata"!

Na frente, ao nível do chão, um arco baixo conduz ao interior. Para entrar, é preciso abaixar-se em sinal de reverência. Lá dentro, há uma sala de dimensões igualmente reduzidas em que um homem de estatura mediana consegue ficar ereto. Não há janelas e o clima é de clausura e contrição - apropriado para meditar sobre o espaço e sua imensidão que, embora incomensurável, cabe em nossa mente.

Mas o maior barato ainda é o proporcional corredor espacial - zona instável! -, que há entre as paredes do hall do templo original - a cavalariça, erguida em nome do amor do homem pela mulher e desta para os cavalos -, e o templo-intervenção que Ventura arquitetou em nome da memória afetiva de uma infância reconstituída, como, de resto, quase todas o são. Por ali transitaram em fervilhante e comovente agitação os humildes carpinteiros-construtores deste e de todos os países, tão artistas quanto o artista. Não sabemos se eles estavam, como desejável seria, para que a catársis da desconstruída construção buarqueana se operasse, entre a multidão de improvisados "hadjis", que, ali, agora, na inauguração, reverentemente peregrinavam, dando voltas e mais voltas em torno do venerável totem, Caaba ou monolito Kubrickiano. Temos certeza entretanto que era surpreendente a plena sensação de estar dentro e fora a um só tempo, o que tornava instáveis as noções de "contém" e "está contido" da teoria dos conjuntos, porque ali, embora o hall parecesse conter a monumental escultura, na verdade, era esta que continha aquele, ci-inclus todos nós, em qualquer das hipóteses, integrantes integrados e partícipes da criação artística.

A obra logo será demolida mas suas marcas em nós serão indeléveis e por via da memória genética, interrompendo o fluxo mensal, darão curso ao humano. Um dia nossos descendentes saberão do paradoxo que é o exterior estar contido no interior. Do aventureiro e venturoso Ventura. Cum laude!

Provocamos Ventura se não seria o caso de facultar ao povo uma escadinha do tipo torre de campanário, interna e/ou externa, para que se pudesse chegar ao topo. A idéia original era essa e de fato há um acesso nas entranhas, mas que, em vista da fragilidade do material e do conseqüente perigo de acidentes com crianças e bêbados, foi vedada. Esses, os conflitos do arquiteto com o artista. O primeiro quer melhorar nossas vidas, proporcionando-nos conforto com beleza e segurança. O segundo não pensa. Sente e faz.

Rio de Haneiro 2002

©Alexandros Papadopoulos Evremidis > escritor crítico > Email


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