"CADERNOS DA LITERATURA BRASILEIRA - Millôr Fernandes"
"Por falta de par, Millôr é singular" ou "Millôr Fernandes - melhor agora ou antes?" ou ainda "O Millôr é o 'milhor'"...

©Alexandros Papadopoulos Evremidis*

... em sua categoria e com sua categoria de octogenário, dotado de inesgotável lucidez, presença de espírito e língua afiada, marcando em cima do lance mesmo.

Veja por quê: na noite do lançamento do supracitado caderno, no IMS, quando, tendo eu finalmente conseguido um exemplar com a assessora de comunicação Myriam, o procurei para o autógrafo, ele já não estava mais onde devia. Precipitei-me para a saída e interceptei-o a tempo:

- Este aqui vai ter que ser em pé! - falei, estendendo o livro, meio que me desculpando por imaginar que, depois de 4 horas e duas centenas de dedicatórias, ele estivesse exausto.

- Não tem problema, é só você me ajudar segurando o caderno assim - reagiu Millôr, jovial e sorridente, sem sinais de cansaço ou contrariedade.

Segurei conforme pedido e em segundos ele rabiscou uma dedicatória personalizada e a ilustrou com o desenho de alguém (dele mesmo?) afundando no mar com a mão levantada e o balãozinho/cabeça exclamando "Dá pé!"

Sentiu a troca? Confesso: fiquei comovido, me senti tiete e rasguei uma apelação sedutora e avassaladora:

- Seria grave blasfêmia, se eu, ao invés de dizer "Obrigado, Millôr", dissesse "Obrigado, My Lord" (vocativo privativo do Incriado)?

- Pode me chamar do que quiser, desde que não seja de "Coisa Ruim" - ele pegou no ar e me desarmou novamente.

- Não, isso nunca! - Protestei. - Afinal, você é nosso patrimônio.

- O que é só um pouquinho menos pior do que o matrimônio! - arrematou Millôr, lançando aquele seu olhar estrambótico de X=45, e as palavras se fizeram silêncio.

Dei-me, uma vez mais, conta de que na verdade Millôr é assim, Millôr é isso - uns poucos e breves instantes, representados por um significante, prenhe de intensa, profunda e aterradora significação. Estava ali o homem que Diógenes, o Cínico, (que Cínico se chamava, não por cínico ser, mas por seu tonel estar 'estacionado' próximo a um canil), com uma lanterna acesa e em plena luz do dia procurava.

Agora, lendo e relendo esse Caderno do Millôr, faço um parêntese, para me congratular com o IMS que, tendo iniciado os Cadernos de Literatura, em 96, com o João Cabral de Melo Neto, chega agora, invicto, ao número 15 com o Millôr, passando por, entre outros (não menos), Amado, Gullar, Ubaldo, Suassuna, Cony e Euclides. Pode, portanto, a série deixar de ser botão e desabrochar, debutando como a mais promissora e elaborada proposta. A designação não é original, mas o que ela tem de familiar nos põe à vontade. Chama-se "Cadernos" e, de fato, formato de caderno tem, desses de 8, 10 ou 12 matérias, tão próximo e íntimo de qualquer estudante. E tal qual, é composto de várias matérias/seções muito bem delimitadas e definidas. Como numa pintura cubista, nos revela a um tempo, a face, o verso e os perfis do escritor - ele por ele mesmo; ele visto pelos outros; sendo entrevistado; trechos de obras públicas e inéditas; análises verticais e horizontais; etc e tal qual "meu tesouro", que é como o chamaremos na intimidade. E seu período, como se sintomático e intencional, bate com o calendário escolar - é semestral. Não tem capa dura, mas a edição é caprichada e primorosa, editorial e graficamente, material e formalmente. Felizes, e invejáveis, os 15 que habitam seu território sagrado. E felizes nós que, como eternos estudantes, podemos estudá-los e nos instruir, assim construindo-nos. Sim, porque no dia em que deixarmos de estudar por esses e aqueles outros cadernos, será melhor descermos para a escuridão e a umidade.

Para que dizermos mais de Millôr se o Caderno já tudo diz? Sejamos sucintos como só ele - o desde o berço desconstrutor e desestruturador dos credos e das crenças, dos mitos e dos ditos, das verdades e das mentiras. Por que desde o berço? Era para ser chamado Milton. O apressado ou despreparado nOtário, ao fazer o registro deslizou a abscissa da ordenada do "t" para a direita e ela foi se aninhar como se chapéu chinês sobre o "o". De quebra, o feliz infeliz quebrou a segunda patinha do "n" e este acabou fingindo que era "r". Arre! E foi aí e foi assim que nasceu Millôr - o que foi reformado antes mesmo de ser usado. Menino ainda, o pai morreu - mais desestruturação. A mãe seguiu logo atrás, como se para confirmar o dito e feito de que desgraça pouca é vantagem, e Millôr, se esvaindo em lágrimas debaixo da cama, aprendeu com Deus que não era mais para nele crer. Desconstruiu geral! Mas como também não há mal isento do bem e vice-versa, como num processo de compensação, promovido pela justiça natural, esses martírios fortaleceram e temperaram-lhe a personalidade, a vontade de superação; afinal é no fogo das adversidades e das provações que se malha o caráter do homem.

Aprendida a lição, Millôr não mais parou. E como, ao contrário dos primos, junto aos quais foi agregado, não tinha amigos, nem brinquedos nem bifes, fez das palavras e dos rabiscos o cerne de sua existência, razão do seu viver e do seu lazer, lazer que terminou por se tornar seu ofício (se é que assim podemos chamar a filosofia informal). Perscrutou-lhes a forma e o conteúdo, os visíveis e os ocultos significados, casou-as e divorciou-as inúmeras vezes, virou-as de ponta-cabeça, esgotou-as, esvaziou-as e descobriu-lhes o valor, o preço, a manha. Como engenheiro linguístico e conceitual, autodidata, que acabou por se tornar, procedeu à incessante re-engenharia delas. E reinventou-as. Tanto que, de lá para cá, brinca com elas como se pecinhas de lego e com elas monta e desmonta, constrói e desconstrói, desestrutura, estilhaça os ícones e os ritos. Isso, porque, também muito cedo em sua vida, tomou ciência de que o mundo e o universo são feitos delas. Se algo não tinha nome, não existia para todos os efeitos, igualzinho a um indivíduo sem carteira de identidade, um Ulisses/Ninguém diante do ciclope Polifemo.

Viu, porém, Millôr que elas também eram maltratadas, torcidas e distorcidas, submetidas à promiscuidade, prostituídas e manipuladas ao sabor de escusos e espúrios interesses (ou ignorância mesmo). E tudo isso às claras e diante de nossos cegos olhos e preguiçosa e acomodada mente, razão porque nós não percebemos o engodo. Millôr, não! Ele, já dissemos, disso fez seu modus vivendi et operandi e procedeu ao verdadeiro apocalipse, nos revelando por a+b que a recíproca de qualquer tese, afirmação ou ditado é, no mínimo, tão ou mais verdadeira ou mentirosa. E para nós acordar do narcótico letargo, ele nos cutuca (e nos odiamos e gostamos) com a verga de ponta fina, elegante, inteligente, precisa, sucinta, nem uma vírgula ou letrinha a mais ou a menos, palavra nem pensar. Absolutamente cirúrgico (plástico!), irônico, ácido, cáustico, contundente e perfurocortante. É assim que ele opera - metódica e cientificamente. Ou como um artista minimalista que tambem é. Ele não gosta de ser chamado de artista, e muito menos de minimalista, mas nós não damos a mínima para isso. Não estamos aqui para dizer o que ele gosta ou deixa de gostar que dele se diga. E agora, sim, disso ele gosta e foi o que por toda uma vida ele se esforçou para nos ensinar - que cada um diga o que pensa. Com ampla e irrestrita, toda, liberdade. Dizemos então e em alto e bom som que, mais que humorista, artista, dramaturgo, Millôr é um pensador. Livre-pensador! E é exatamente por essa sua qualificação que ele nos vai deixando nus e envergonhados; por não estarmos vendo o óbvio, por vivermos e pensarmos como mulas equipadas com tapa-olhos.

Não é segredo, entretanto, que para a maioria ele é um humorista, ainda que dos melhores, senão o tal. Mas ser humorista no país do humor, mais, da piada, (não foi De Gaulle quem assim nos estigmatizou?) não tem a menor graça. O próprio Millôr diz ser idiota o fazedor de piadas. Não, ele era dado a vôos mais altos, mais nobres. Aqueles que transformam a fraqueza em força, como a que ele tem e mostra a toda hora e a toda prova. E é o que ele quer nos passar, nos ensinar - a ver o mundo com os perquiridores olhos da criança que ele nunca deixou de ser. Sim, agora está tudo ficando mais claro que a clara luz - quando ele era mais jovem, o físico e o espírito cresciam numa razão diretamente proporcional. Agora, contrariando seu próprio aforismo de que "a alma enruga antes da pele", o processo se inverteu - enquanto o físico diminui e se encolhe, o espírito cresce na razão inversamente proporcional.

Em suma: Millôr fez seu catecismo no ceticismo e com isso tornou-se definitivo. Cabe a nós um dia, que esperamos seja distante, fazermos jus ao termo "epígonos do Millôr".

Rio de Janeiro - 2003

Alexandros Papadopoulos Evremidis = > escritor crítico > Email


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