"DEVOÇÃO BRASILEIRA - Imagens da fé de um povo", de Marlene Godoy
A sacerdotisa da arte.

©Alexandros Papadopoulos Evremidis*

São_Sabastião_O_Mártir"Ser artista não é um destino nem uma opção. Ser artista é a liberdade de se mover em qualquer direção", estampa Marlene Godoy logo no pórtico de seu livro Arte-Sacra Contemporânea Brasileira. E está certa. Tem licença poética para isso. E, escorada nela, assim age - se move para trás, para os primórdios, para beber nas fontes originais, e se inspira na arte e no engenho dos homens primitivos, na Europa, na África, nos mares do sul, aqui mesmo nos autóctones indígenas. E com a mesma desenvoltura se nutre também com a arte moderna e contemporânea e, mais, ousada, adiante de seu tempo, com a arte embrionária do que está por vir, sendo ela uma das pioneiras vanguardas. Serve-se com total liberdade de matériais elementares como pedras semi-preciosas, cascalho, conchas, madeiras - pau-brasil, cascas de árvores, cordas, tecidos rudimentares, estopas, pérolas, cacos de porcelana; e também metais texturizados - bronze, cobre, alumínio -, tubos e focos de luz alimentados por pilhas elétricas para iluminar suas obras ou simplesmente equipá-las com o inusitado, com o insólito.

Com que roupa que eu vou? Pois bem, foi com esses materiais todos, que, servindo-se do processo de encáustica, ela construíu e vestiu seus homens e mulheres - santos, santas, índios, negros, até o tal espírito santo. E ao fazer isso, ora pareceu agir como uma criança travessa em plena atividade lúdica, ora como uma ciente anciã, plena de conhecimento e sabedoria, a discorrer sobre etnografia e antropologia, sobre semas e signos reveladores da cultura ancestral dos povos.

Marlene é miudinha e serena. Na noite da inauguração de sua exposição, vestida com uma capa comprida que lhe confere um ar sacerdotal, ela circula o tempo todo pelas imensas galerias do Espaço Cultural dos Correios, falando sem parar, explicando, orientando, comentando. Às tantas, abordo-a e digo-lhe de cara que ela é muito audaz por ter feito o que fez, como o fez e com o que o fez. "É, tem razão", murmura ela sorrindo cúmplice, "eu sou meio louquinha mesmo". E põe louquinha nisso! São dezenas de trabalhos, entre telas, objetos, esculturas, tótens, sarcófagos, instalações. Imagino que disponha de uma oficina do tamanho de um galpão com um sem-número de auxiliares. Afinal, Rubens, no auge, chegou a ter uns 200 aprendizes. Que nada, ela corta, eu fiz tudo sozinha. A bem da verdade, tenho um empregado, sim, mas que só faz pregar e parafusar. Assim mesmo, se ele não executa a tarefa do que jeito que eu gosto, pego as ferramentas, desfaço tudo e refaço eu mesma tudinho do início.

E como é esse negócio de encáustica que ela desenterrou da arca da velha e que, desde os tempos da Grécia Antiga, quase não se tem usado? Não tem mistério, Marlene joga os seus materiais num caldeirão, ferve, acrescenta os pigmentos apropriados e manda ver. Está provado, portanto, para criar seus santos ela recorre à bruxaria, brinco. E não é à toa, porque logo adiante fico sabendo que para fazer a obra "Santa Clara e São Francisco de Assis", ela simplesmente pegou a lindíssima e finamente colorida jarra de porcelana de estimação, presente oferecido pela mãe no dia do casamento, quebrou-a em mil pedaços e com eles a adornou, como se um mosáico bizantino. O casal de santos, por sinal, parece envolto numa única peça de roupa - uma telinha pobre mas significativa, como convém à santidade autêntica. Se aquela jarra simbolizava a eternização do nosso laço, agora está mais do que eternizado, diz Marlene hieraticamente.

Pergunto à filha de Marlene, presente na abertura, se não é difícil viver com uma mãe tão ocupada e ativa. Não, porque ela é totalmente zen. Não implica com nada nem com ninguém. Passa o dia inteiro agitando as coisas de arte dela e rezando. Imagino então que esteja sobrando para o marido, José. Quem é que administra a área doméstica? José não tem o menor constrangimento em dizer que é ele. Está bem, eles tem uma empregada, mas ele faz questão de todo sábado, às 6 da matina, ir ao Ceasa de Brasília, onde moram, para efetuar as compras. A mulher desconfia desse madrugar do marido e, para alfinetá-lo, brincando, é claro, o atribui às lindas japonesas que por lá atendem. Mas o marido sempre volta na hora certa e cumpre o restante das tarefas - dar as necessárias instruções para isso e aquilo. Isso é o de menos, ele brinca. O pior foi quando certo dia cheguei em casa e não encontrei minhas gravatas. Marlene as confiscara, "queimara" e usara para a criação da tela "Conselho de ética" - Jesus coroado de espinhos e ladeado por engravatados senhores de colarinho branco. (Ainda bem que eu não gostava muito delas). Assim, não é nada difícil ver que as preocupações de nossa miúda artista não se limitam à beatitude dos santos, sabe também dar seu recado aos demônios. E, ainda, aos torturadores escravocratas e escravagistas, com a peça "Pelourinho", aos índios, habitantes primeiros dessas paragens, comoventemente homenageados, e à natureza, chegando a criar a "Nossa Senhora da Ecologia" - Artémis renovada. Vasto é, portanto, o universo da artista e, para dar conta, maior a sua arte. Nada de artificialismos e sensacionalismos. Trata-se de uma criação absolutamente sincera e verdadeira, plena de estética, emoção e intelecto, atributos proprietários de toda arte que ao nome jus faz.

Rio de Janeiro 2002.

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