Maria Luíza Leão - "Trajeto Percorrido".
A injustiça ou o canto do cisne?©Alexandros Papadopoulos Evremidis*
Na verdade, fui aos Correios para ver a plácida paixão bramânica de ChrisMarchal. E, claro, estando lá, não ia deixar de fora a MariLuLeão. Digo isso porque eu já tinha lido o release dela e ele me passou a idéia de uma artista austera e, mais, arcaica, um esforçado dino que tendo cumprido seu papel fadava-se ao limbo. Comecei a olhar os inúmeros trabalhos de toda uma vida e a surpresa e a admiração foram me assaltando e levando a íntimas exclamações - que beleza este! e esse! e mais aquele!, todos, sem pôr nem tirar. Uma revelação! Os seus temas, as suas técnicas, o conhecimento de causa, o passeio pela história da pintura, o banho que ela dá, e quão amorosamente! - tudo me encantou e por instantes me vi flutuando, tal a leveza, a delicadeza, a sutileza, a discreta poesia da Maria Luíza.
Lembrando do release, pensei quem tem amigos assim não precisa de inimigos. E pensar que por pouco eu teria ido embora sem antes ... ah, deixe para lá. Deixe para lá, não, eu estava alucinado, possuído mesmo pela híbris, e tinha que dizer isso a ela. Mas quem é ela, onde está, alguém viu? De repente apontaram uma figurinha minúscula (apesar da tentação, não substituir o minúscula por mignon!) no epicentro da multidão, um foco de cândida luz em meio a sombras, um sol/zinho.
Precipitei-me sobre ela e "Maria Luíza, desabafei, vim lhe dizer que seu release não faz jus nem a você e muito menos às suas criações ... (mas ... e se foi ela quem o redigiu? - frio arrepio na dorsal - não, sendo ela a artista que é e autora inconteste de sublime estética, não cometeria uma infame incongruência dessas), ... ele é cheio de explicações e justificativas, só falta pedir desculpas por você ter feito o que fez e pinta você como algo competente, disciplinado, ordeiro, mas morno e enfadonho, ultrapassado. Isso não é verdadeiro e também não é justo - seus trabalhos são absolutamente modernos e contemporâneos (e mesmo que não fossem?!, algum problema?!) e eu estou encantado com eles. Enquanto os observava, resumi numa singela frase que sintetiza tudo o que senti e sinto agora e a trouxe para você - 'Você tem trânsito livre por todos os mundos e, até, pelos submundos da arte. Você acrescenta beleza à beleza existente!'" E mais não disse.
MariLuLeão me encarou, sorriu com a face toda, o que lhe aumentou superlativamente o brilho dos grandes olhos de Ápis, e também não se conteve: "Você tem toda razão, também acho isso, essa garotada de hoje não entende das coisas". Generosa e magnânima, entretanto, não havia lamento nem mágoa em seu tom, apenas resignada constatação dos fatos que, ela sabe, seguem seu curso com ou sem nosso concurso. A expressão de seu rosto era de pura epifania, toda luz e áurea aura que se irradiava pelo espaço, nos tempos dos templos que, agora percebo, oportunamente lhe serão erguidos, simulando a reparação do irreparável. Que importa! Ela parecia feliz contudo, que é o que merece ser contado.
Mas também vale, em outro dia e outra hora, deixar claro que há em MariLuLeão certa timidez, certo pudor com as cores e os temas - daí aquelas serem ligeiramente desmaiadas, quase mudas; e estes, circunscritos ao seu universo particular. De fato, em toda a sua iconografia, não há um vermelho, um amarelo, um azul de verdade - puro, forte, vibrante, brilhante (com exceção do segundo a que ensaia algumas maiores e luminosas concessões). E tampouco se fazem presentes as complementares, em toda a sua calorosa e benfazeja majestade, salvo, aqui e ali, como co-adjuvantes.
Está bem, atribuirei e creditarei esses retração e recolhimento, pasteurização e pastelização da paleta a sua natureza singular e discreta (não é uma fauvista nem uma expressionista alemã, não é uma beatnik nem está on the road), a de quem não grita, não tem arroubos, revoltas, explosões. Tudo nela acontece em meio a meios tons, na penumbra da finesse, da ponderação. Coisa estranha, porém, para quem se declara brasileira medular e daí tropical e exuberante e expansiva e barulhenta e musical e insubmissa. Por que será que ela colocou essa cortina de fumaça diante do gritante e flamejante real para só permitir que possamos entrever e suspeitar a beleza dos seus sonhos, ocultando a dor e o horror dos complementares pesadelos que nos rodeiam e ameaçam? Intimismos intimistas? Distanciamento operado pela liturgia do procedimento? A vida é, malgré tout, bela? Não está desprovida de razão, e o Brasil é prova cabal disso. (Resumindo: MariLuLeão não pinta no calor das emoções. Ela desenha e depois se copia e colore, a ponto de difícil dizer qual a obra-prima - o ensejo ou a finalização, mestra em ambos que é).
E ainda: está certo também que o artista, como todo criador, é soberano - ninguém deve patrulhá-lo e dizer-lhe o que e como pintar. Mas, para quem foi aluna de Portinari e viveu e vive cercada pela cruel e atroz calamidade social crônica destes tristes trópicos, para um artista hiper-sensível e ainda por cima mulher, que, mater dolorosa, não se aliena da dor do outro, causa estranheza e salta aos olhos esse silêncio, esse fazer de conta de que vivemos no paraíso, esse egotismo de tudo girar em torno do subjetivo e do doméstico, da família, dos muitos amigos, da casa, das flores e da paisagem circundante, [com algumas (felicíssimas!) incursões pelo imaginário, pelo surreal e pelo fantástico]. Onde, porém, está a tragédia brasileira - os fardos, os urros da dor, a fome, a opressão tão corriqueira, a renovada escravização? Onde, a luta, a morte, o luto? Terá Maria Luíza vivido, mais do que numa redoma, num casulo? Mas ela não é vizinha do Parnassos, é da favela e de tudo que ela representa e denota e denuncia. Dizer dos desterrados e dos desenterrados, razão porque sem terra?
Curiosa também é a inexistência dos impulsos primordiais e seminais? Onde, o fogo, o gemido, a carne, o esperma, a sensualidade, o desejo do outro e a busca pelo prazer? Na geometria do "Turista" é que, embora eu ali os tenha suspeitado, não estão, quer dizer, estão subliminarmente. Digamos então que a libido e o sensual, sublimados, se refugiaram na cabeça, nas dobraduras do cérebro. Mas Apolo/Artemis (esta precisa se entregar) sem Dionissos, que fraternidade obtusa seria?! O quê, das brancas ovelhas, sem a negra que lhes servirá de bode expiatório e, sangrando, lhes ofertará a catharsis ?
Finalmente, convém dizer que realmente a artista não segue escolas, mas em compensação ostenta afinidades com uma plêiade de modelos e amigos e companheiros de caminho artístico. São assumidos e reconhecíveis os instantâneos lampejos de Cézanne que virou a mesa, Seurat que matematizou a organização da pintura, de Vincent que dos pontos fez trechos de chuva pictórica avassaladora, de Matisse que a alegrou e embelezou, de Bonnard (ah, seu amado Bonnard) que a diluiu em manchas cotidianas, de de'Chirico que misteriosamente a silenciou, de Guignard que lhe emprestou formas e tonalidades mineiras e minerais (ele não era praiano e nem era exuberante literal), de Reynaldo que compartilha da paralisia contemplativa, do Roberto Magalhães que eterno infante fantasia, do Juarez Machado que destrona o real, do Valentin que sinaliza, do Samico que persiste na obsessão, do ... chega! Maria Luíza antropofagou e fagocitou e emergiu ilesa e inteira e íntegra. É inegável - ela deixa suas pinceladas na história. A sua retrospectiva é em boa parte a retrospectiva dos últimos 125 anos - tão vasto é o raio do seu conhecimento e da sua expressão, da sua arte. Não fosse pintora, certamente seria poeta lírica e romântica, que, na verdade verdadeira, é o que ela é - a ninfa da Hipocrene com diademas de folhinhas de louro.
Tudo com tudo, quem sou eu e quem é você para julgarmos a intensidade da dor do outro? Já não me declarei súdito e adorador? Não mais retirarei um sinal sequer do que jurei no pródromo. Em Maria Luíza Leão, a beleza se consubstanciou e se fez presente e perene.
©Alexandros Papadopoulos Evremidis > escritor crítico > Email
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