| Marcus Lontra |


manifesto surrealista de Marcus Lontra
Desde sua consagração oficial, em 1924, no manifesto assinado pelo poeta André Breton, o Surrealismo vem influenciando diferentes gerações de artistas e movimentos ao redor do globo. Seguindo e combinando livremente os ideais políticos antiburgueses de Karl Marx, as inovadoras investigações de Sigmund Freud no campo da psicologia, a obra literária de autores polêmicos – como Arthur Rimbaud e Conde de Lautréamont –, e ainda as provocações vanguardistas dos dadaístas e dos pintores metafísicos, o Surrealismo explorou, com grande audácia, antigos tabus artísticos e culturais. Elogiando o mundo dos sonhos, as contradições lógicas, as várias formas de insanidade e mesmo certas corrupções morais, esse celebrado movimento ambicionou a elaboração de um maravilhoso mundo novo, regido pela complexidade e estranheza da psique humana, negando assim a ortodoxia racionalista. “O sonho não pode ser também aplicado à solução das questões fundamentais da vida?”, indagava Breton no manifesto surrealista. Para ele, e uma grande parcela dos artistas e pensadores que se filiaram ao movimento, suas estratégias afirmariam, num segundo manifesto, de 1929, não apenas surpreendentes formas artísticas, mas também novas e produtivas relações sociais.
Em sua empreitada, Breton e seus seguidores foram realmente habilidosos ao alinharem e contaminarem uma vasta gama de aspectos tradicionais da história da arte – a pintura, a escultura, a gravura, o figurativismo, o classicismo, o gótico, o barroco..., com movimentos, conceitos e procedimentos técnicos que emergiam no início do século passado – dentre eles o cubismo, o abstracionismo, o automatismo psíquico, o ready-made, a fotografia e o cinema. Ao se apoiarem nas leis do acaso, nas improvisações, nas visões oníricas, nos símbolos primitivos e recentes e em certos delírios dessacralizantes, fossem eles românticos; socialistas ou dadaístas, os artistas do surrealismo lançaram algumas das mais importantes bases para a diversidade formal e os embates conceituais que caracterizam o universo artístico atual.
Para os surrealistas a arte deveria ser um mergulho nas profundezas da mente humana, onde travariam contato com a incessante atividade do inconsciente. Essa imersão coincide com a busca desses artistas pelas versões ocultas – e talvez mais verdadeiras – de si próprios e do mundo ao seu redor. Na trajetória do Surrealismo, os reflexos imprecisos da realidade banal resultaram, muitas vezes, em figuras e narrativas histriônicas, espetaculares e grotescamente assustadoras, como as que recobrem muitas das pinturas do famoso Salvador Dalí. Mas as visões surrealistas foram também espirituais e abstratas quando pintadas por Joan Miró; fantasmagóricas e misteriosas nas fotografias de Man Ray; eroticamente provocantes quando desenhadas por Jean Cocteau; além de constituírem jogos de linguagem filosoficamente potentes, quando representadas por René Magritte, talvez o mais sutil dos surrealistas.
As investigações desses artistas foram fundamentais na afirmação do modernismo na Europa e nas Américas. Aqui no Brasil, momentos-chave da epopeia modernista de nossas artes visuais e literatura são reflexos diretos dos avanços das tropas surrealistas: “Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem” – nos fala o “Manifesto Antropófago”, um ritual artístico e cultural tropicalmente surreal. E o que dizer, é claro, da figura tragicômica do “Abaporu” de Tarsila do Amaral, dos corpos bizarros e andrógenos nas pinturas de Ismael Nery, do mundo sem peso de Cícero Dias; do anti-herói Macunaíma; da “pedra no caminho” do poeta Carlos Drummond de Andrade; da Praça dos Três Poderes de Oscar Niemeyer, cercada de palácios de vidro “flutuantes”?
Se o Surrealismo foi essencial na afirmação do modernismo na Europa e nas Américas, foi nas décadas de 1960 e 1970, quando a crítica estava empenhada em cunhar a noção de arte contemporânea, que esse movimento revolucionário gerou frutos ainda mais contestadores. A Pop Arte, a Arte Povera, a Arte Conceitual e a Body Art são apenas alguns dos movimentos ou tendências que repensam o estatuto da arte com altas doses de subversão tipicamente “surrealista”. Os objetos moles de Claes Oldenburg; a Vênus em meio a trapos de roupa de Michelangelo Pistoletto; as armadilhas conceituais de Joseph Kosuth e os atos de autoflagelação de Chris Burden dialogam estreitamente com as mais notórias obras do movimento europeu.
Em nossos Anos de Chumbo, traços da subversão deflagrada por Breton podem ser notados em verdadeiros atos políticos de resistência e de denúncia que ganham corpo, por exemplo, nas notas de “Zero Cruzeiro” de Cildo Meireles; na mala forrada de pregos e dedicada “A um jovem de brilhante futuro” de Carlos Zilio e nas “Trouxas” ensangüentadas de Artur Barrio.
Ao pensarmos nas últimas cinco décadas, não apenas o panorama artístico, mas também cultural mundial não parou de se rechear com figuras e histórias que parecem ter saído de uma obra surrealista: os apelos sensuais da publicidade dos “Mad Men”; o “Yellow Submarine” dos Beatles; o movimento hippie e a psicodelia; a estética punk dos Ramones, de Vivienne Westwood e dos Sex Pistols; os filmes da Disney, de Roman Polansky, do Monty Python, de David Lynch e de Tim Burton; o visual alucinatório da MTV; estrelas do design como Philippe Starck; grandes nomes da música pop como o Pink Floyd, o Nirvana e, mais recentemente, Lady Gaga. Em nosso país não foi diferente, basta lembrar o comportamento colorido e absurdo do “velho guerreiro” Chacrinha; das narrativas sombrias e delirantes do “Zé do Caixão”; dos “Secos e Molhados” e das espetaculares e mágicas atrações nos desfiles de escolas de samba. Não podemos nos esquecer, é claro, de que “surreal” é um adjetivo corriqueiro no dia a dia do brasileiro.
Nesta mostra o público é convidado a investigar as possíveis reverberações do complexo universo surrealista na produção artística brasileira recente. Ao percorrer as salas no Centro de Arte Hélio Oiticica, o visitante entrará em contato com objetos estáticos e em movimento; vídeos; performances e, como não poderia faltar, uma série de pinturas e esculturas. Todos eles contam narrativas estranhas, paradoxais, fantásticas e absurdas. Cada espaço desta exposição explora, a partir da ótica surrealista, o caráter provocativo e diversificado de nossa produção artística atual – ela, um verdadeiro “cadáver maravilhoso”. Veremos como alguns representantes da chamada arte contemporânea, ao invés de afirmarem bruscas rupturas, buscam negociar com alguns dos mais marcantes postulados da arte moderna.

Sobre o surrealismo:
O termo surrealismo, cunhado por André Breton com base na idéia de "estado de fantasia supernaturalista" de Guillaume Apollinaire, traz um sentido de afastamento da realidade comum que o movimento surrealista celebra desde o primeiro manifesto, de 1924. Nos termos de Breton, autor do manifesto, trata-se de "resolver a contradição até agora vigente entre sonho e realidade pela criação de uma realidade absoluta, uma supra-realidade". A importância do mundo onírico, do irracional e do inconsciente, anunciada no texto, se relaciona diretamente ao uso livre que os artistas fazem da obra de Sigmund Freud e da psicanálise, permitindo-lhes explorar nas artes o imaginário e os impulsos ocultos da mente. O caráter anti-racionalista do surrealismo coloca-o em posição diametralmente oposta das tendências construtivas e formalistas na arte que florescem na Europa após a Primeira Guerra Mundial, 1914-1918, e das tendências ligadas ao chamado retorno à ordem. Como vertente crítica de origem francesa, o surrealismo aparece como alternativa ao cubismo, alimentado pela retomada das matrizes românticas francesa e alemã, do simbolismo, da pintura metafísica italiana - Giorgio de Chirico, principalmente - e do caráter irreverente e dessacralizador do dadaísmo, do qual vem parte dos surrealistas. Como o movimento dada, o surrealismo apresenta-se como crítica cultural mais ampla, que interpela não somente as artes mas modelos culturais, passados e presentes. Na contestação radical de valores que empreende, faz uso de variados canais de expressão - revistas, manifestos, exposições e outros -, mobiliza diferentes modalidades artísticas como escultura, literatura, pintura, fotografia, artes gráficas e cinema.
A crítica à racionalidade burguesa em favor do maravilhoso, do fantástico e dos sonhos reúne artistas de feições muito variadas. Na literatura, além de Breton, Louis Aragon, Philippe Soupault, Georges Bataille, Michel Leiris, Max Jacob entre outros. Nas artes plásticas, René Magritte, André Masson, Joán Miró, Max Ernst, Salvador Dalí, e outros. Na fotografia, Man Ray, Dora Maar, Brasaï. No cinema, Luis Buñuel. Certos temas e imagens são obsessivamente tratados por eles, com soluções distintas, como, por exemplo, o sexo e o erotismo; o corpo, suas mutilações e metamorfoses; o manequim e a boneca; a violência, a dor e a loucura; as civilizações primitivas; e o mundo da máquina. Esse amplo repertório de temas e imagens encontra-se traduzido nas obras por procedimentos e métodos pensados como capazes de driblar os controles conscientes do artista, portanto, responsáveis pela liberação de imagens e impulsos primitivos. A escrita e a pintura automáticas, fartamente utilizadas, são formas de transcrição imediata do inconsciente, pela expressão do "funcionamento real do pensamento" - como, os desenhos produzidos coletivamente entre 1926 e 1927 por Man Ray, Yves Tanguy, Miró e Max Morise, com o título O Cadáver Requintado). A frottage [fricção] desenvolvida por Ernst faz parte das técnicas automáticas de produção. Trata-se de esfregar lápis ou crayon sobre uma superfície áspera ou texturizada para "provocar" imagens, resultados aleatórios do processo, como a série de desenhos História Natural, realizada entre 1924 e 1927.
As colagens e assemblages constituem mais uma expressão caraterística da lógica de produção surrealista, ancorada na idéia de acaso e de escolha aleatória, princípio central de criação para os dadaístas. A célebre frase de Lautréamont é tomada como inspiração forte: '"Belo como o encontro casual entre uma máquina de costura e um guarda-chuva numa mesa de dissecção". A sugestão do escritor se faz notar na justaposição de objetos desconexos e nas associações à primeira vista impossíveis, que particularizam as colagens e objetos surrealistas. Que dizer de um ferro de passar cheio de pregos, de uma xícara de chá coberta de peles ou de uma bola suspensa por corda de violino? Dalí radicaliza a idéia de libertação dos instintos e impulsos contra qualquer controle racional pela defesa do método da "paranóia crítica", forma de tornar o delírio um mecanismo produtivo, criador. A crítica cultural empreendida pelos surrealistas, baseada nas articulações arte/inconsciente e arte/política, deixa entrever sua ambição revolucionária e subversiva, amparada na psicanálise - contra a repressão dos instintos - e na idéia de revolução oriunda do marxismo (contra a dominação burguesa). As relações controversas do grupo com a política aparecem na adesão de alguns ao trotskismo (Breton, por exemplo) e nas posições reacionárias de outros, como Dalí.
A difusão do surrealismo pela Europa e Estados Unidos faz-se rapidamente. É possível rastreá-lo em esculturas de artistas díspares como Alberto Giacometti, Alexander Calder, Hans Arp e Henry Spencer Moore. Na Bélgica, Romênia e Alemanha ecos surrealistas vibram em obras de Paul Delvaux, Victor Brauner e Hans Bellmer, respectivamente. Na América do Sul e no Caribe, o chileno Roberto Matta e o cubano Wifredo Lam devem ser lembrados como afinados com o movimento. Nos Estados Unidos, o surrealismo é fonte de inspiração para o expressionismo abstrato e a arte pop. No Brasil especificamente o surrealismo reverbera em obras variadas como as de Ismael Nery e Cicero Dias, assim como nas fotomontagens de Jorge de Lima. Nos dias atuais artistas continuam a tirar proveito das lições surrealistas. (Itaú Cultural)

Rio de Janeiro 2012


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