| Marcelo Brantes |
< DEUS É FILTRO >
Marcado pela obsessão dos dias e das horas, pelos inúmeros cigarros fumados, o fazer do artista revela a obstinação dos apaixonados. Secretamente nos fala do delicado equilíbrio em que consiste a beleza, do quanto é frágil respirar e manter o pulso das convicções enquanto se espera a própria vida, em forma de arte, renascer das cinzas de tantos cigarros fumados. Deles nada se perde, tudo se transforma em poesia; tudo se cria. Das cinzas apagadas e frias, pacientemente recolhidas em potes transparentes que, em seguida, são arranjados nas prateleiras de uma estante em aço, como as que vemos nos laboratório de mineralogia, Marcelo nos faz contemplar finíssimas camadas aveludadas que, variando do negro profundo ao prata brilhante, nos lembram amostras minerais recolhidas de substratos geológicos e que durante milênios foram se sedimentando em estruturas aluviais. As sedas queimadas e manchadas pelo marrom do tabaco, organizadas em tons e surtons, rearranjam-se em uma extensa superfície plana. Revelam manchas sutis que sugerem de relance as marcas de um corpo ou vapores de nuvens, poeira e fumaça, na profusão de uma explosão.
Marcelo Brantes é um sobrevivente. Primeiro, do atentado de 11 de setembro, quando morava em Nova York e pôde viver de perto o drama que assombrou o ocidente. Depois, já de retorno ao Brasil, testemunhou a tragédia das chuvas e dos subseqüentes deslizamentos que em janeiro deste ano assolou a Região Serrana do Rio, particularmente Nova Friburgo, onde o artista mantém seu ateliê ou o que sobrou dele: a casa que vinha construindo como moradia e local de trabalho foi invadida pela enxurrada e, com ela, uma avalanche de lama. Enterrada parcialmente, transformou-se subitamente em uma ruína contemporânea. A mudança radical da paisagem deixou um rastro de desolamento, afetando todo seu entorno. Não seria estranho que uma obra nascida de tal provação pudesse sussurrar aos ouvidos um murmúrio surdo, um lamento, que secretamente nos fala da morte, dos processos de putrefação e, surpreendentemente, de seu contrário, da vida e de suas incansáveis estratégias de renascimento, filtragem e germinação — da arte como cura, enfim.

Rio de Janeiro 2012


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©Alexandros Papadopoulos Evremidis = escritor crítico > Email
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