"O RISCO - Lúcio Costa e a utopia moderna ", de Geraldo Motta Filho / org. - notas de Guilherme Wisnik / Cosac & Naify.
Desenhar é (se arriscar a) riscar©Alexandros Papadopoulos Evremidis*
O still à esquerda é a capa do Risco. Mas assim, sem o título e sem o nome do autor? Bem, arte é assim, plena de surpresas e estranhamentos. À direita, Costa com a mulher e a primeira filha.
Foi assim desde o início dos tempos - entre os trogloditas, nos jardins suspensos da Babel, nos piramidais túmulos dos faraós, em Atenas e Roma, aqui e agora. Os arquitetos acreditam que, a par do abrigo e do conforto, embelezando o habitat, melhoram os homens, os tornam mais humanos.
Não seria diferente com o brasileiro Lúcio Costa que, nascido na França, onde brincou o jardim e se instruiu no fundamental, e com uma temporada na Inglaterra, onde completou o intermédio, no Rio de Janeiro num fim de tarde com sua bagagem estrangeira aportou, no primeiro pós-guerra, para, antes mesmo de desembarcar, se encantar com os signos da curvilínea cidade feminina.
No dia seguinte, a decepção: a realidade não fazia jus à visão - o Rio era a nave dos insensatos e aqui imperavam a bagunceira desordem, a escandalosa miséria, o vergonhoso abandono, o novorico descaso com o bem comum - o povo e a cidade. Predadores haviam conspurgado o bosque sagrado de Apolo. (Deve ser coisa de estrangeiro: 5 décadas depois, o autor destas mal digitadas, ao penetrar o navio a Baía da Guanabara, de madrugada, delirou com as imagens poéticas e ficou literalmente de queixo caído e machucado. Horas depois, já em terra firme, face às incalculáveis riquezas do gigante adormecido (ainda e sempre), o mesmo choque de Costa - de um lado, a desmesurada mendicância, os inválidos a exibir todas as feridas, a infância maltratada, as púberes se oferecendo por um par de meias, um maço de cigarros; e de outro, o cinismo das autoridades ao propalar as grandezas e as maravilhas! Moral - nem a natureza nem a vida haviam mudado desde os tempos de então).
Talvez tenha sido naqueles instantes iniciais que o visionário Costa sonhou em oferecer a modernidade a seu país. Talvez só depois, quando, desiludindo o pai que o queria pintor, optou pela arquitetura. Foi por meio dela que travou conhecimento com o Purismo que Le Corbusier (à esquerda, com Natureza Morta) e Ozenfant (à direita, com Vasos) estavam elaborando - linhas claras e simples, sem lixo decorativo, - e que tanto alimentariam o discípulo Niemeyer, a seu devido tempo.
Mas ainda faltavam maturidade e conhecimento de causa. Encarregado do patrimônio, Costa estudou e pesquisou a fundo as raízes, aqui e na metrópole colonial, e delas cuidou com zelo. E as canonizou - dizendo qual passado a que futuro pertence. Cumprida a tarefa, libertou-se dela e passou a aplicar a modernidade em residências, hotéis, museus, ministérios, bairros e, até!, uma cidade inteira. Sendo que, quem planta uma cidade constrói um país, uma nação!
Em 36, o que ele mesmo chama de milagre, mas que não passa do feliz acaso do homem, hora e lugar certos, também dito por ele. Capanema encomenda o Ministério de Educação e Saúde. Costa prepara os preliminares e mexe os pauzinhos para que seu ídolo Corbusier seja convidado oficialmente para consultoria. O francês vem, profere conferências e interfere no projeto, o quer à beira-mar; conflitos de autoridades, entretanto, o fazem retornar a seu lugar de origem que é onde está hoje. O projeto do Corbusier é descartado e um despretensioso "risco" de Niemeyer serve de base. O prédio, primeira construção inteiramente moderna, é erguido e causa espanto - sustenta-se sobre pilotis, seu térreo é vazado, cria-se uma praça ao redor e uma rua passa por entre as "pernas" do colosso. Uma conquista de Lúcio e Oscar. E um queixume de Corbusier que reclama não ter sido pago. Suas vingança, sim, também os deuses são vingativos, veio na seqüência e em dobro: a primeira, logo depois, quando o governo brasileiro pagou a Lipchitz, amigo íntimo de Corbusier, por um monumental Prometeu, mas só recebeu um nanico; e a segunda, duas décadas após, quando Lúcio, encarregado do pavilhão brasileiro em Paris, ao consultar uma vez mais Corbusier, este primeiro se fez de rogado, para logo a seguir, se apropriar do todo. O que de verdade, o que de lenda? Era Costa ingênuo? Que interessa isso agora?! Dizem que havia respeito, admiração e afeto entre os gigantes.
Se o edifício do "episódio brasileiro", como passou a ser referido o Ministério, foi sua primeira obra de peso, o plano Brasília foi o mais grandioso e ambicioso, onde os brasileiros deveriam se espelhar e se orientar - rumo e direção. Ali, Costa e Oscar finalmente realizaram o sonho de dotar o Brasil de uma cara nova, tirá-lo do corrupto e cômodo ecletismo, não comprometido com nada, e atirá-lo à modernidade futurista, sinalizando a inclusão social, o útero acolhedor da mãe gentil de todos; administração e povo em harmoniosa convivência; Brasília criada com toda liberdade, a linha vestida de branco, cidade a flutuar. A resultante é fantasmagórica, Brasília é função da luz.
Dizem que a base era uma cruz como a sugerir a tomada cabralina de posse. Mas cruz também remete a sofrimento, à humilhação, à morte pregada do lendário. Dizem também que seria um avião carregado de povo e governo a pousar. E ficar avariado por décadas? Que tal imaginá-la decolando em direção à genuína modernidade do trinômio liberté/egalité/fraternité, do acolhimento e da inclusão dos sem teto e sem terra, dos sem nada e dos com fome de comida e justiça? Seja como for, o que Lúcio e Oscar ali fizeram ainda não está na História - por falta de distanciamento e perspectiva. Um dia ambos figurarão ao lado de Fídias e Praxíteles, Bramante, Michelangelo, Bernini, ...
Estes e outros relatos, alguns apócrifos, estão no longametragem que o cineasta Geraldo Motta Filho acaba de lançar - uma obra de arte, sem pôr nem tirar. Para realizar a tarefa, Geraldo filmou os sítios arquitetônicos de Costa, realizou/colheu 19 entevistas/depoimentos de familiares, amigos e críticos e ainda aproveitou trechos de filmes em 8mm feitos pelo próprio Costa e também sobre ele e sua obra pelo arquiteto José Resnik.
E então, na contramão da tradição, o filme de arte virou também livro de arte. Se bem que este mais perece um filme artesanal, já que as folhas do miolo são todas pretas como a nos induzir à sensação do escurinho do cinema. E os tópicos dos textos são separados por barrinhas azúis que nos sugerem os riscos - risco/desenho do Costa na prancheta, conforme a gíria particular dele, e risco no sentido da temerária proposição de construir uma cidade que modernizasse um país; e também o risco corrido pelo diretor do filme, que facilmente podia resvalar para um patético encómio; não foi, é consciente e perspicaz; suas perguntas, que nem aparecem no texto, mas com alguma engenharia são intuídas e suspeitadas, se configuram espirituais e críticas, instigantes e reveladoras. Um mérito, sem dúvida, que acabou por contagiar seus entrevistados não lhes deixando outra opção senão a verdade, com toda a sua estética que só merece tal designação se também ética. Os familiares e amigos souberam enaltecer o homem erudito, afetuoso e generoso, mas também, já que humanum est, apontar as pequenas fraquezas - o despropositado horror à invasão de sua intimidade, que o levou a destruir a marteladas o retrato que de sua cabeça fez a encantadora prima Ivna; ou a expulsão aos gritos do jovem arquiteto que, em assumida e confessada tietagem, havia montado um álbum com recortes de textos e fotos a respeito de seu ídolo. Justiça seja feita, as próprias filhas reconhecem o lado obscuro e taciturno do brasileiro que passou os anos da formação sob os nublados céus europeus.
Já os críticos - todos, de uma ou de outra forma, eruditos da arte e da sua história, da sua teoria e da sua práxis -, discorrem com desenvoltura e talento literário, para elogiar onde cabe e criticar onde coube. Niemeyer por exemplo chama o plano Barra de aborto que o deixa envergonhado diante de amigos estrangeiros - uma Miami metida à besta. Outro discorda frontalmente do duplo eixo de Brasília e se ressente da falta da praça do povo apartado do seus delegados. Mas isso são outros quinhentos ... e desta vez contados a partir da invenção de Brasília pelo daemon de Lúcio Costa.
Só falta dizer que o livro/arte é ricamente ilustrado, na capa e no interior, com fotos e com stills dos filmes de então e do de agora e que exalam certo aroma de nostalgia e de abstração.
Última palavra: O livro deve se tornar um vademecum para todo aspirante à arquitetura e à arte de viver criativamente.
Rio de Janeiro 2003.
©Alexandros Papadopoulos Evremidis > escritor crítico > E-mail
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