"URBIA" - Linneu Moreira Dias / org. Ida Vicenzia Flores / Editora Garamond.
Poesia - o último ato do ator!

©Alexandros Papadopoulos Evremidis*

Amor incondicional
diz que se conhece quando
nascem os filhos.
Conheci vivendo com meu pai.
Os meus filhos são frutos dele:
Do amor incondicional
e do meu pai.
O Vovô.

A poética destas singelas mas contundentes e afirmativas palavras, que Júlia Lemmertz para sempre afixa na quarta capa do póstumo livro de poemas de seu pai, Linneu Moreira Dias, ilustrada por esta foto deles - ela apoiada sobre o sintomático lado esquerdo do peito do pai -, nos dizem da diluição do tempo e da instauração do reino amoroso da permanência. Ele, enigmático, olha para o próximo distante e lhe segreda as configurações do eterno; ela, nos encara, envolve e acaricia com o olhar, apaziguando e revelando aquilo por que ansiamos - o mistério do amor sem limites e sem condições.

E no ato somos invadidos por uma saudável inveja e aflora em nós o desejo, não de estar em seu lugar, mas a seu lado e com ela comungar e compartilhar desse precioso e incorpóreo legado. Incontinenti também somos levados a lembrar de Solon dizendo a Creso que para o espírito grego um homem só podia ser considerado feliz no dia da sua morte e, assim mesmo, não pelas riquezas e glórias obtidas e acumuladas, mas pela afetuosa presença dos seus.

Sem riscos de exagero, a maioria das pessoas, bem antes de morrer fisicamente, degrada-se e perece espiritualmente, deixando-se dominar pelo desânimo e pela depressão, submetendo-se à apatia e à afasia, encolhendo-se no âmago de seu interior casulo e esvaindo-se em silenciosos gritos e sussuros, insuportáveis dores; a vida passa então a ser uma sucessão de intermináveis instantes à espera da benfazeja e libertadora morte, que, quanto mais evocada, como extemporânea punição, mais se faz de rogada.

Aqui, com Linneu, o demolidor dos clichés, temos um outro paradigma, não do que é, mas do que pode ser, e será, benéfico a todos - o de quem desde sempre e até o último suspiro se mostra um tenaz e persistente lutador - trabalhador da vida; o de quem, ao invés de fugir à batalha, enfrenta os desafios e, ganhe ou perca, contabiliza o que sobra como lucro - imaterial. Sabe ele, como poucos, aceitar, e com rara humildade, as conquistadas vitórias e absorver as necessárias derrotas, transfigurando-as em aprendizado e experiência, munição para o embate seguinte, que, ele sabe, virá, e com mais vigor e complexidade.

Equipado com esse instrumental, Linneu, ao longo da longa e produtiva caminhada, estudou artes dramáticas, foi cronista e contista de diários e periódicos, professor de interpretação teatral, tradutor de clássicos do teatro e dramaturgo laureado ele mesmo com o Prêmio Sharp por sua criação "Minh'Alma, Alma Minha". Como ator, sua definitiva paixão, trabalhou em peças emblemáticas como Cândido, Hedda Gabler, Hamlet, Fedra, Esperando Godot, Andorra, Os inimigos e outros, e brilhou ao lado de ícones do teatro como Cacilda Becker, Amélia Bittencourt, Paulo José, para só citar estes.

Não bastasse essa bagagem toda, nos últimos anos de sua vida, Linneu, já sentindo a proximidade da implacável e irrecorrível passagem, ao invés de ficar se lamuriando e incomodando a família e os amigos, se dedica em traduzir em lúcida poesia os sentimentos e as emoções, a aguda, crítica, bruta e rude, mordaz e cáustica e, ainda assim, lírica observação e percepção que faz dos humanos e da cidade, coisa que, na verdade, ele já fazia indiretamente a vida toda - era digamos a poesia aplicada no terreno pessoal, familiar e com os inúmeros amigos - íntimos, sociais e profissionais.

É preciso que se diga também que, como ninguém é perfeito, aqui e ali também Linneu dá umas escorregadinhas. É o caso por exemplo quando esculhamba os camelôs que ocupam as calçadas e dizem fazer isso por estarem desempegados. "Pois que se empreguem", esbraveja Linneu parecendo desconhecer a situação calamitosa do país no que tange o desemprego aviltante que há por aí. Não devemos esquecer que por uma frase semelhante, Maria Antonieta perdeu o trono e cabeça nos idos de 1792.

O fruto dessa sua sensibilidade, a que nada passa despercebido, está aí nesses primorosos versos de "Urbia", uma poesia absolutamente moderna e contemporânea no sentido mais amplo dos termos, ciente que está Linneu de que não é a métrica e a rima que fazem um texto transmutar-se em poesia, mas a ininterrupta pulsação da verdade, não em oposição à mentira e à simulação, mas em livre, integral e, quando solicitado, despudorada expressão das autênticas emoções, sem subterfúgios e sem meias palavras. Ele nos ensina o destemor de pôr o dedo na ferida.

Como Voltaire, em Candide, Linneu, com concisão e espantosa economia verbal, percorre os subterrâneos labirintos da humana psiqué e, com igual desenvoltura, fala da morte de uma mosca ou do amor de Julieta, seja por Romeo, seja por Alexandre, o magno companheiro de sua filha. Tudo, portanto, é poesia e a tudo ele se doa e por inteiro, como o verdadeiro ator deve se comportar em cena. Como trovador de insones madrugadas ou solitário peregrino das ruas e praças da urbe, ele canta a vida, os filhos, os netos, uma árvore, um cão, um gato, da mesma forma que esculhamba o descaso das autoridades e a irresponsabilidade civil dos cidadãos. Sem nunca, porém, perder a ternura e o humor - tônicas e propulsoras molas de Linneu.

Não é por acaso que, falando de Linneu, usamos, na maioria das vezes, os verbos no presente do indicativo, como a indicar que Linneu, embora morto, não morreu - ele continua entre nós, como se vivo e ativo fosse - um farol que avisa aos navegantes: a vida é uma interativa parceria e uma desvairada aventura. Mesmo que seja por só essa sua contribuição ao contínuo fluxo de criatividade - esse puro e inocente livro de poemas -, Linneu se torna merecedor da imortalidade. Longa vida, pois, a ele! E que Urbia chegue pelas mãos dos adultos às das crianças e dos velhinhos, para que todos aprendam como se cresce, como se envelhece e como se vive para sempre.

Rio de Janeiro 2003.

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