Jorge Fonseca - "Me alugo pra sonhar" - bordados e objetos
A celebração da arte afirmativa!

©Alexandros Papadopoulos Evremidis*

Assim como é sempre bom lembrar a asserção óbvia de que um copo vazio está cheio de ar, convém também não esquecer do atributo pétreo da arte que é o de nos causar imediata surpresa e conseqüente estranhamento, ambos seguidos de etéreo encantamento - para o bem, para o mal. Sabe aquela espécie de obra de arte que, no que você bate o olhar, te captura, te aprisiona, te submete, mas também não te permite ficar apático e impassível? Foi o que aconteceu ao me deparar com a singeleza e a candura dos trabalhos de Jorge Fonseca, plenos da mais pura emoção a evocar e excitar os nossos desejos mais íntimos e recônditos, quase inconfessáveis. É preciso coragem, ingenuidade e imaculada inocência para não se envergonhar e constranger da posse de sentimentos em meio às maquinações da maquinaria. Era bom ver alguém que não nadava nem contra nem a favor das marés e dos modismos, não era católico nem protestava contra nada, alguém que, firme sobre suas raízes populares, traçava o próprio caminho e navegava seu rio interior em direção à plenitude amorosa.

"Pode pisar, eu deixo", traz inscrito um capacho/objeto feito de grama, obviamente, diante do efêmero, sintética. "Revelação", titula-se uma sinuosa anágua rendada, de cálida e convidativa e irreprimível sensualidade. "Se você está ao meu lado", sentencia um travesseiro cravejado de preciosidades sonoras prenunciando o anúncio do que está por vir - a trêmula expectativa da pessoa amada. "Tá esperando o quê?", incita mais do que pergunta outra obra que exibe uma figurinha no alto de uma escadinha, em pleno espaço, onírico e adiamantado, e a gente se sente como se ele nos dissesse "Sobe mais (ou salta), homem, não há o que temer, voa ou mergulha no campo azul dos sonhos e da imaginação criativa". E para os que ainda assim, recalcitrantes, teimam em hesitar, Fonseca disponibiliza um par de assas columbinas, brancas! naturalmente - voar, voar! não é só com os pássaros, é o que ele, qual Dédalo, nos quer re/ensinar. E para chegar aonde? A um arranjo floral, em cujo epicentro, em forma de "tondo", um chalezinho de chaminé enfumaçada nos espera, à beira de um riacho, meus livros e meus discos e principalmente você que confere sentido ao ser em meio ao nada. É esta a pureza de alma desse moço humilde na origem e sofisticado na realização construtiva do objetivo - icônico e paradigmático.

Chega desses devaneios com que a arte, qual narcótico, nos seduz e vicia, e vamos ao terreno, ao terreiro hierático! a que ela nos conduz! Retomando a linha e as rédeas, dizia eu que no primeiríssimo contato visual com as extemporâneas, por anacrônicas diante do materialismo desenfreado imperante, criações de Fonseca, senti o impacto - as maçãs de minha face se ergueram, repuxando os cantos da boca, agora semi-aberta, e o desenho de um sorriso se instalou e amplificou e os olhos, avivados, brilharam. "Venham ver!", chamei empolgado meus familiares, dispersos por aí, venham ver que arte maravilhosa! De fato, acorreram todos e enquanto observavam as obras, eu observava as suas fisionomias. E não deu outra - o tal sorriso nasceu nos rostos de todos, se expandiu e se estendeu, e os deixou com cara de sol reluzente e feliz. Esse, o poder da arte sincera e espontânea, despretensiosa. Tivesse o Fonseca usado as próprias tripas para costurar, bordar e tricotar e não teriam suas criações sido mais autênticas, no pathos e no pothos, no invencível, diante do Thanatos, Eros que as dominava.

Intrigado com toda aquela empatia e a identificação que se havia apossado de mim, fui, curioso, saber do título da mostra - "Me alugo pra sonhar", dizia o sublime mercador e no ato a fraternidade se consolidou. Anos antes, eu havia inserido um anúncio no jornal anunciando a venda dos mais variados sonhos e, lúgubre, até de pesadelos, "Para quem é incapaz de sonhar", dizia. Ali, agora, estava explicado por que me sentia em casa de um irmão. A comunicação plena estava estabelecida e a comunhão encontrava-se em curso, com o concurso da arte, cujo outro atributo é sem dúvida esse - o de cumplicidade na conspiração.

Não devo em hipótese alguma desviar do assunto sem antes ressaltar, além da muito plástica e texturizada e pictórica excelência das "volumosas" obras, que incontinenti nos condizem à retina e ao tato, essa delícia de ferramenta com que a natureza nos dotou, a suprema poética de sua conceituação intelectual e também a concretude, coisa só de apaixonados doadores de universos reais e concomitantemente virtuais e, o melhor, a todos de todo acessíveis. Além, muito além da matéria insossa e vulgar está a morada de Fonseca - continente que é de um ideário estético urânio.


Do pai, maquinista de trem e marceneiro, o artista aprendeu a lidar com a madeira e o fogo e a andar na... linha. Da mãe e das tias, costureiras e bordadeiras, aprendeu o desenho, a forma, a cor, que transcendendo a manipulação da linha e da agulha e a confecção do necessário, do útil e do funcional, aportou na artística tarefa de formatar a vida, repaginar-lhe os dias e as horas e embelezá-la, reaparelhá-la com o mágico encanto perdido ou desperdiçado. Pavimentar o curso do trajeto, seu e o alheio, com a energização da libido que nele se expressa superlativamente e derrama emoções e sentimentos, sonhos e ilusões, desejos ardentes - tudo que é capaz de tornar o homem feliz. E onde se encontra isso? Entre o céu e a terra - o misterioso Urano e a gaiata Gaia -, que Fonseca reúne em êxtase, por meio da linha de suas pipas, vasos condutores e comunicantes da matéria e do espírito e de tudo o mais que do homem faz nascer o humano.

A arte, tal qual a amizade e o amor, cuja soma é responsável pela maior parte do que nomeamos felicidade e pelo que todos os viventes, cada um a seu modo, anseiam, freqüentemente se encontra muito mais próximo do que imaginamos - quando não em nosso interior, ao imediato redor e ao alcance de nossas mãos e de nossas aspirações. Ciente disso e por estar imbuído de espírito luminoso e afirmativo, Fonseca não foi longe, nem recorreu ao sobre e supernatural - colheu aqui mesmo, no cotidiano mais prosaico, os elementos constitutivos de sua arte e, re/significando-os, os inundou de poesia e paixão. Acorde com a contemporaneidade, serviu-se de suportes que permeiam amplas gamas de realidade a par com os territórios da fantasia, tecendo assim o tecido que teceu nossas mais caras tramas com a linha da memória afetiva. E construtivo, como laboriosa aracné, nos enredou e tornou súditos cativos. E o melhor, com todo prazer, esse mesmo prazer que ele insinua, sugere e oferta em generosas doses - sublimado e a um tempo absolutamente carnal, onde há lugar para ele, para ela, e ainda para o outro e a outra, para todos quantos.

Rio de Janeiro 2004.

©Alexandros Papadopoulos Evremidis > escritor crítico > Email


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