Fernando Reis Vianna
DESPACIFICADOS ou a verdade com os olhos fechados Estamos vendo o que o artista vê. A pintura é fruto de fotografias de crianças tiradas por ele nas ruas da Lapa. Elas estão soltas no tempo e no espaço, viajantes nos fundos crus e neutros de cada recorte dessas imagens. O artista enxerga a criança em sua leveza anônima e em seu peso de toda uma vida pela frente.
As fotos que viram pintura que viram imagem universal nem confortam nem inquietam. As crianças, essas sim, detonam nossas buscas de sentido, nossa tentativa vã de localizar e conformar aquelas pequenas pessoas no quadro da razão e do juízo. Seriam crianças de rua? Miseráveis? Sem futuro, sofrendo? A pintura nos leva a pensar sobre isso e a ter certa pena das crianças e de nós mesmos. O artista, porém, vai além do que queremos ver e nos avisa pela boca de um dos meninos: podemos enxergar a verdade com os olhos fechados e o coração aberto.
A arte tem dessas forças que arrastam os sentidos sem volta, que nos levam a julgamentos e definições apressados. A arte testa os nossos limites da razão, coloca nossa paz em xeque. A arte nos deixa, enfim, sem pai nem mãe. Assim, nossa vontade é que as crianças das telas sejam pobres meninos, colados e pintados nas telas. Abandonados, como nós. Mas nem sempre temos o que queremos. Em conversa com o artista, ele diz que as fotos das crianças das pinturas não são de meninos desamparados. No dia em que o artista as fotografou, elas tinham mães ao lado. Família. Nesse jogo entre o retrato de alguém e o vazio do que ela representa de fato, nesse deslocamento entre o que fica óbvio para nós (as pequenas crianças desamparadas sem camisa) e o que de fato ocorre (crianças normais, na rua com seus pais, apenas posam para uma foto), o artista nos oferece simultaneamente sua questão e sua resposta. A verdade com os olhos fechados.
Assim, do primeiro engano vamos ao segundo, quando nossas vistas vêem o mesmo rosto repetidamente, porém de forma diferente. O mesmo menino que nos encara (e outros dois, um de pé e outro de lado) se repete e acumula, se mistura às tintas e ganha formas de acordo com as camadas de cores neutras ou quentes desenhando máscaras, contornos e cegueiras. Nos quadros, a mesma criança trança formas e fundos, lança olhares e rancores, cria asas e se afirma inquisitiva entre as listras de tintas. Ela torna-se muitas, expande um em milhão e não deixa dúvidas de que é justamente sua unidade indivisível que a transforma em qualquer um. Para sermos muitos, precisamos sempre ser um.
Essas crianças nos lembram que cada uma das crianças e pessoas no mundo tem seu rosto próprio, em contraste com o afogamento das faces nos grandes centros urbanos. Em meio aos milhares de rostos que vemos todos os dias e esquecemos no segundo seguinte, estão os rostos que Fernando nos traz em suas pinturas. Despacificados.
Quem perdeu a paz? Quem um dia já esteve pacificado nessa cidade? Que respeito temos a essa paz que associamos diretamente à infância? Eles, um dia, terão paz? As pinturas de Fernando Reis Vianna nos deixam perplexos frente ao que elas não dizem. O silêncio da criança faz dela um espelho esmaecido de nos mesmos: sozinhos, esperando a paz que nunca virá. Ou que sempre esteve aqui e nunca conseguimos enxergar. Ainda.
Frederico Coelho
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