| FARNESE | OBJETOS |
Esta é a mais completa exposição de Farnese de Andrade, com um grande panorama da obra do artista mineiro com 126 peças, algumas inéditas, além do lançamento do catálogo. Com a mostra, que tem curadoria do historiador e editor Charles Cosac, que também assina o principal texto do catálogo, o CCBB vai explorar os aspectos singulares da obra de Farnese, que, dono de uma personalidade difícil, morreu em 1996, aos 70 anos, sem ter sua obra suficientemente analisada pela crítica nem absorvida pelo mercado de arte.
Nascido em Araguary, no Triângulo Mineiro, em 1926, Farnese de Andrade Neto entrou em 1945 na Escola do Parque de Belo Horizonte, onde foi aluno de Guignard e contemporâneo de artistas como Amilcar de Castro, Mary Vieira e Mário Siléso. Começou a carreira como desenhista e gravador e, a partir de 1964, passou a transformar os restos de madeira e brinquedos que coletava junto com conchas e detritos vindos do mar em obras de arte. Essas obras — assemblages de composições e formatos variados — são o ponto alto do seu trabalho e da mostra no CCBB.
As primeiras caixas de Farnese já misturam bonecos destruídos, mariscos, cacos e bolas de vidro. Embora tenha sido muitas vezes chamado de escultor, o artista nada esculpia; apenas dava tratamento ao mobiliário mineiro de roça que adquiria em fontes diversas (antiquários, feiras e depósito de demolição), misturando-os à "coleção de restos" que reunia nas praias e até mesmo na rua. As imagens de santos também são um elemento recorrente em sua obra. Elas aparecem invertidas, mutiladas ou envoltas em redomas (nas peças mais antigas) ou resina (mais recentes). Sobretudo os santos popularizados pela Umbanda — como Iemanjá, São Jorge e os gêmeos São Cosme e São Damião. A exposição do CCBB reúne obras importantíssimas para se compreender a poética do artista, caso, por exemplo, de "Mater" (1990), um pedaço de madeira atravessado por um grosso fio de ferro — que faz o papel de uma espécie de cordão umbilical. Na superfície da madeira, uma foto resinada da mãe do artista e do próprio Farnese, no espelho. É o caso, também, de "Araguary" (1975/1984), um pedestal de madeira onde Farnese instalou, uma foto de sua cidade natal. Em cima do pedestal, pôs ainda uma cabeça de boneca envolta em resina, como se estivesse boiando em líquido. Ou ainda "Anunciação" (1984), uma gamela de madeira em cujo fundo o artista acrescentou uma foto de bebê e a forma de um ovo.
Para a crítica Uiara Bartira a obra de Farnese está estruturada a partir de signos. Apesar de profundamente autobiográficas, suas peças abordariam o tempo inteiro a dualidade entre a vida e a morte — e a angústia do homem diante do fato inevitável de que vai morrer. Outros antagonismos, como o entre feminino e masculino, também são abordados nas assemblages.
"Suportes como gamelas, oratórios, armários e caixas de resina são utilizados como ‘corpo’ e definem diferentes segmentos. As gamelas falam da sensualidade — o feminino —, o que está embaixo. Os oratórios, da cerebralidade — o masculino —, o que está em cima. Os armários discutem sexualidade, o egoísmo, a posse. As caixas — inside — o egocentrismo. Nas resinas residem os medos, as inseguranças e as ansiedades", escreve Uiara.
Bonecos queimados ou mutilados também são outra marca da obra do artista, como se observa na série de trabalhos sobre a tragédia atômica de Hiroshima, presente na mostra do CCBB. Eles também aparecem no filme "Farnese" (1970), dirigido e roteirizado pelo crítico de arte Olívio Tavares de Araújo e escolhido melhor curta-metragem no Festival de Cinema de Brasília de 1971. No filme — restaurado em 2001 e transformado em um DVD que faz parte do livro de luxo "Farnese de Andrade", editado pela Cosac Naify — a voz em off do diretor comenta o que o espectador está vendo:
"Campos de concentração, cidades devastadas, bombardeiros repletos de Napalm, um humanismo esmagado, a manhã seguinte em Hiroshima e Nagazaki. É nesta atmosfera que respiram os habitantes das caixas de Farnese. A eles se aplica um antigo paradoxo. Imagens que não suportaríamos em sua existência original, depois de reelaboradas pelo artista adquirem uma nova e positiva dimensão. E oferecem uma emoção vizinha da alegria: o prazer que resulta, por força, da beleza".
No texto de apresentação do catálogo, o curador Charles Cosac, um grande amigo do artista, estabelece um paralelo entre a obra de Farnese e artistas da linha de frente do construtivismo brasileiro, como Lygia Clark, Mary Vieira e Amílcar de Castro. Para Cosac, é interessante observar os caminhos distintos percorridos pelo artista e seu contemporâneo Amilcar, também mineiro e também ex-aluno de Guignard. O texto compara a diferença entre as poéticas dos brasileiros com a distinção entre a obra de Malevich e Tatlin com o amadurecimento da vanguarda russa do início do século XX.
"(...) Amilcar de Castro se satisfez, e a tantos amantes das artes visuais, com a excelência e o virtuosismo de seu corte e de sua dobra. Uma obra dependente da idéia; uma obra na qual o gesto resta na precisão; na qual a tentativa é feita em menor escala e em material mais maleável e na qual a realização é a comissão na fundição. Por fim, uma obra na qual o lirismo oscila do concreto ao abstrato e o bruto consegue ser gentil.
De outro, Farnese de Andrade desenhou e colou objetos, com isso fazendo outros objetos só para relatar sua dor, sua solidão, seus rancores, seus complexos, suas depressões, sua relações, sua libido, seus recalques, enfim, sua vida. Sua obra é exclusivamente autobiográfica.
Farnese de Andrade e Amilcar de Castro estudaram na escola de Guignard. Os dois são de Minas Gerais. É bem possível que os dois, em épocas próximas, porém diferentes, tenham praticado o mesmo exercício de desenhar à exaustão, com lápis de grafite bem duro, o detalhe quase microscópico de uma folha de árvore. Coincidentemente, foi este também o exercício praticado pela pintora norte-americana minimalista Agnes Martin.
A intenção dos três artistas não poderia ter sido mais distinta – isso para não mencionar o resultado pictórico. Contudo, tenho certeza de que o que os levou a criar suas obras - tendo em vista o altíssimo grau de sinceridade na feitura e de qualidade no resultado pictórico - são, ou só poderiam ter sido, resultados de "hábitos estranhos", hábitos estranhíssimos".
No livro Farnese de Andrade, da Cosac Naify, o crítico Rodrigo Naves destaca, no texto "A grande tristeza", a sensação perturbadora que é estar diante da obra de Farnese: "Conheço pouca coisa mais triste que os trabalhos de Farnese de Andrade. Essas cabeças de boneca arrancadas do corpo lembram maldades de infância. As madeiras gastas de seus trabalhos guardam um tempo esponjoso, que se acumula sobre s ombros e nos paralisa os movimentos. As fotografias e imagens presas nos blocos de poliéster falam de um passado que nos inquieta, mas que não podemos remover ou processar, já que não mais nos pertence."
Rio de Janeiro 2005