| Enéas Valle - 'Geópolis'' |
A propósito do Curvismo: Enéas Valle? Vale, sim, vale ouro, muito ouro. E também safiras, brilhantes diamantes e rubis com todos os pontos nos is.

©Alexandros Papadopoulos Evremidis*

Curva é reta desviada ou transviada? Digamos, com Leibniz, que, no universo, não há mais que curva, já que o ponto é circunferência de raio infinitamente pequeno; a curva, arco de circunferência de raio finito; e reta, arco de circunferência de raio infinitamente extenso.

A curva portanto é. A reta, não.

E que dizer da nossa civilização que nos incutiu ser o reto o ideal da retidão!! Ao mesmo tempo nos bancos biológicos nos ensinaram que reto é coisa vazante. E mais, e pior - na gíria polaca curva é prostituta. Sejamos portanto prostitutos e, com Einstein, deixemos que o universo se curve sobre nós, nos abrace, afague e finalmente acolha, como nunca antes fomos acolhidos pela pólis - geópolis, que (agora) seja, no incorrigível (e confortador) (também irônico?) otimismo de Valle.

É preciso também que se diga que, quando alguém se propõe a fazer do ato de refletir sobre arte outra arte, não pode se furtar de, ao modo dos geômetras e dos escultores, desbastar o contingente para assim desvendar o necessário - as menos de meia dúzia de formas estruturais, subjacentes e regentes da arquitetura do universo - do ser e do nada. Assim, dizer do Enéas e da obra dele, além de prazeroso e estimulante, é absolutamente indispensável - daí necessário. Mesmo porque não fosse ele artista visual, seria poeta, que é o que ele de concreto e conceitual é. E com mais valia - performático. Ator, enfim.

Não foi ele que, segundo o mythos e sua filha, a propedêutica parábola, quando os helenos, usando do ulisseano estratagema, incendiaram Ílion, para assim re/afirmar a supremacia da inteligência sobre a brutalidade da emoção, carregando o velho pai (seu histórico) nas costas, partiu para o desterro?! E não foram, séculos depois, seus brutos epígonos romanos que, invertendo o paradigma, submeteram a Hélade?! Mas com diferencial - mais generosos que os inteligentes helenos, a pouparam da destruição total. E mais - por ela se deixaram seduzir e a amaram, dando-lhe inclusive o Império do Oriente como dote de noiva! Outros tantos séculos depois, entretanto, ela acabou, e desta vez cruelmente, sendo subjugada pelos otomanos, representantes legais dos troianos! A história e a lei natural não são vingativas, são em sua implacável causalidade justas.

Esses prolegómenos, só para ilustrar o que Enéas Valle carrega para o interior de sua vasta e significativa criação. Eu já o conhecia, assim como as suas obras inaugurais, mas muito festiva e superficialmente. Lembro como se agora fosse. Enquanto arfando eu subia os semnúmero degraus do Belas Artes, meditava sobre os sinais. Não me passara despercebido estar a retrospectiva de Valle alojada no último andar, o da sintomática esfera superior portanto. E o nome da galeria - Século XXI - não podia ser mais inequívoco e sinalizador do que me esperava. Movente ansiedade e inquietação se apoderaram de mim.

Lembro ter visto, no corredor em que desemboca o último lance de escada, a gênese do ponto e do traço e do seu desenvolvimento prossopopéico - estávamos todos, ícones e anônimos, ali homenageados e representados. Na seqüência, à esquerda, o espaço parecia um misto de depósito de ferro velho, brechó e laboratório de química/física - repousavam jaziam por aí velhas e empoeiradas máquinas de escrever e teclados desfuncionalizados, maletas de mascate e macadame, telefones desusados da comunicação, vidros, potes e recipientes de conteúdos vários - poções, humores, fleumas, tinta com que se pinta, pigmentos -, fios encapa e desencapados, piranhas esqueléticas subindo pelas paredes e ainda exóticas biomorfias. Ao fundo, uma fita de video em loop projetava sobre uma mega-tela frenética dança e monocórdio canto (heróicos_eróticos_heréticos?!).

Já em transe, vibrando e reverberando o penetrante som, percorri os demais corredores ocupados por grandes telas de brilhante luminosidade (ouro, puro ouro derretido), inebriante sensualidade e aterrador desolamento. Corpos de carne virtualmente incendiada por outras tantas paixões, inconfessáveis de tão pecaminosas e ainda assim, ou por causa, absolutamente saudáveis em sua esparramada animalidade de jacarés ao sol. "Ao saber que é um animal o (sub/super)homem deixa de o ser" - tomou-me de assalto o ardente e devorador enigma/aforisma, asserção hegeliana (embora não diga que deixando de ser o que é vem a ser o quê) citada por Enéas em quadrinhos interceptados por curvas.

Ao final da peregrinação, algumas incertas certezas e o terceiro sinal - aquela galeria era na verdade um imenso corredor correndo em círculo ao redor da tetrágona Kaaba - o monstruoso cubo preto contendo branco in utero (ou, mais prosaicamente, um banheiro e uma cozinha). Por DZeus, suspirei, agora eu sei o que esse rapaz carrega nas costas - um museu (o tempo) e a um tempo uma enciclopédia viva (o espaço), um inventário da vida e da história da arte, da humana destinação. Se aqui agora o mundo desaparecesse por um atômico apocalipse qualquer e sobrasse apenas esta exposição, adventícios seres alienígenas teriam um formidável banco de dados e tudo descobririam a respeito da nossa civilização - da roda ao boot e ao byte.

Vamos aos croquis conceituais que fiz ali e no ato, com todo fervor e ardor: Enéas olhava para o mundo e suas coisas, mais do que como uma criança (tabula rasa / white paper) (por suspeição de reminiscência), como um animal que subitamente, epifanicamente, adquirisse consciência e deles se apercebesse, com integral inocência e espanto, perplexidade, horror e encanto.

Para que o homem vem ao mundo? - é desde as cavernas, e antes, que, intrigante e angustiante, a pergunta ecoa. Para realizar sua natureza, disse mais de um moralizador filósofo. Para mudá-lo, revolveu outro e, após tragica e ridiculamente nos frustrar, submergiu com mastros e sem rastros, deixando-nos na mais atroz das orfandades, na estéril masturbação. Enéas, lúdico ser, parece ter vindo para brincar e brinca com toda seriedade. E também com cândida ingenuidade e cáustica perspicácia - com lúcida lucidez.

Estranhas coisas acontecem às vezes na vida de quem escreve sobre arte - matéria densa e corrosiva. Carreguei em mim por tantos anos estas apócrifas emoções me pressionando, oprimindo e exigindo expressão. Agora, finalmente, liberto me sinto. E curvo. Um corvo Poe_ético.

Foto: Marco Rodrigues

Rio de Janeiro 2005

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