"Os dias em claro", de David Cury

... e as noites em escuro! : (nosso sub/título, única intervenção, apela para a obviedade enganosa, já que, claro, supõe-se que o artista passe os dias no escuro e as noites em claro, entre o sim e o não, o pôr e o tirar, o fazer e o desfazer da trama da Penelope laboriosa) :

Obra_de_Cury David Cury é um dos raros pintores surgidos nos últimos quinze anos que ultrapassa as questões deixadas pela pintura dos anos 80. Ao contrário de valorizar a intuição e o fluxo espontâneo da subjetividade, e a partir da opção pela monocromia (uso do preto, apenas), as telas do artista resultam de conceitos, métodos e repertórios que relativizam a hipótese da morte da pintura.

O resultado é surpreendente: manchas e tramas surgem gradualmente, e se instalam como “névoa”, de espessura incontestável mas transitória. O artista as constrói a partir de pinceladas pré-demarcadas na tela, criando ora concentrações, ora liquefações da tinta acrílica de grafite. O trabalho, uma série que David começou a produzir este ano, estará na exposição "Os dias em claro", que abre no próximo dia 16 de setembro na Anita Schwartz Galeria de Arte, no Rio Design Barra.

“A escala e a monocromia — praticamente tudo o que constitui este conjunto de pinturas — vão contra aquilo que uma descrição verbal poderia de imediato sugerir: no lugar do drama que se espera do uso exaustivo do negro e do grande formato, essas telas estabelecem com o espectador um relacionamento de delicadeza extrema. Pinturas “a meia voz”, com um baixo nível de ruído e das quais só nos podemos aproximar com cuidado e sem pressa. Nenhum índice de grandiloqüência ou teatralidade perturbam o quase silêncio com que a pintura se apresenta ao olhar. O gesto (mínimo) que as constrói, ainda que repetido inúmeras vezes, tende a fazer com que a imagem se dilua, em vez de a concentrar: infinitos pequenos momentos de sfumatto do negro, até perdê-lo na tela, como se a pintura, em sua função de dar a ver, tivesse receio de o fazer sem alguma forma de velamento que compensasse qualquer eventual extroversão”, escreve o crítico de arte Reynaldo Roels Jr., no catálogo da mostra.

A individual — que reúne cinco pinturas em grandes dimensões (200 x 300 cm) em acrílica sobre lona crua — propõe, segundo David, pelo menos duas experiências co-laterais: a de uma topografia abstrata para o Rio de Janeiro de hoje (com luminosidade avessa àquela freqüentemente referida à cidade), e a de uma pintura contemporânea, que se interroga sobre sua própria atualidade.

Para o crítico, trata-se de um esforço do artista “para isolar o mínimo denominador comum que transforma o gesto inaugural de cobrir a tela com pigmento e a carrega com um elenco de significados muito além do que os contidos naqueles gestos simples de levar o pincel ao tecido”.

Ainda segundo Roels, “a situação em que se encontra a pintura hoje — um tanto encurralada após a perda de sua posição secularmente central na história da arte — favorece o tipo de interrogação de David, sobre as estratégias, os limites e os efeitos da pintura”.

Rio de Janeiro 2004.


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