"Outras Ordens" - objetos, de Carisse Tarran
Ativa - combativa - combatente

©Alexandros Papadopoulos Evremidis

O que é arte contemporânea e em que ela se distingue da moderna? No latu, e a seu tempo, toda arte é contemporânea. No stictu, usando a pintura como bode expiatório, podemos, circunscrevendo-a por exclusão pragmática, afirmar que é tudo que não é colorir, desenhar, gravar, etc. e não se atém a axiologias formais, pictóricas e espaciais (ciente e consciente, entretanto, de que nada disso é desprezível, apenas anacrônico e inapropriado para o nosso momentum crucial - este último epíteto será, uma vez mais, a metáfora da sua libertação do jugo: sem mais jugos! Chegamos ao ponto nevrálgico de Clarisse Tarran - um grito que quebra vidros e hierarquias eclesiásticas, canônicas, seculares, sociais e derruba pirâmides de todo matiz.

A arte contemporânea de Tarran é, então, algo guerreiro e guerrilheiro, partisano que ronda, invade, permeia, questiona, desaranja, põe sob foco e a nu e contamina áreas, antes imunes, como a política, a sociologia, a religião, a moral, o corpo, a libido. Numa prosaica prosa diríamos até que, tendo ela tido a visão da arte sentindo na carne o enjôo da impotente inoperância, da preocupação com a epiderme, a carne, os retratos, as paisagens, as botinas dos papas, dos reis, dos senhores, sofreu uma radical ruptura e orientou-se a favor do novo humanismo, despojado de todo absolutismo. A arte contemporânea da artista é, portanto, libertária e libertadora.

Tarran, que em duas ocasiões nos contagiou com esse seu espírito, capitulado no título desta, destemida, mesmo quando subrepticia e demagogicamente censurada, pelos detentores dos espaços expositivos, desfralda o paneau e se inscreve e insere de pleno direito nesse contexto. Inquieta, irrequieta, agitadora, já nos radiografou, nos revirou pelo avesso e expôs o drama e a tragédia de nossas perversas existências, o preto e o cinza de nosso interior, o vazio de nossa pompa, a cruz gratuita que carregamos - a mentira e a hipocrisia, as restrições e os preconceitos morais e sexuais. E em um vídeo recente, por meio de uma arte bruta e cruel, nos reduziu a massas acuadas, amedrontadas, enclausuradas e fustigadas por múltiplas torturas chinesas - um cul de sac, um paredón, um sem saída para os senhores K, em que de alguma forma disforme todos somos transformados.

O sintagma de Tarran é autêntico anti-sintagma. Ela desmonta e expõe o nonsense e o ufanismo entorpecente dos ícones e dos paradigmas, valores antes inquestionáveis e que só servem para ninar o gado, para assim melhor e com mais eficiência lhe subtrair o pouco mais que nada. Vejamos a emblemática instalação do emblema deste país que solene alardeia ordem e progresso. Pra começar, diz ela, sendo o dito de origem positivista e principiando com "o amor por princípio", o início do trinômio já lhe foi surrupiado de nascença, concentrando-se assim nos meios e nos fins - que mutuamente se justificam para a manutenção do status - de uma madrasta, por clichê, nada gentil.

Rearranjando as letras do estandarte, como se búzios ou runas, orientados logica e significativamente, Tarran canaliza e analisa e catalisa, entre outras "ordens", a resultante "order me pogresso", que, irrigada por "outras cores", remete a muito oportunas alusões à re/aculturação, ao neo/colonialismo e à re/escravização, à negação do que se prega. Senão, onde está a propalada ordem? Só se for nas intermináveis e dolorosas filas dos hospitais, dos aposentados, das escolas, do cartão-esmola, dos sem-terra, dos sem-nada. Ou, quem sabe, nas outras ordens que, não nascendo do consenso, vêm de cima, de fora, das ordens religiosas. Tudo, menos ordem em casa. Estufa-se o peito com o progresso, mas onde está ele que não alcança as maiorias? Pelo contrário, delas mantém distância estratégica e, num racismo ao contrário, só contempla as minoritárias elites. Para o curral, tudo pelo social, pelo mínimo - salário mínimo, educação mínima, saúde mínima, cidadania de qualidade mínima. Por fim, cova mínima!

Há, entre as instigantes obras apresentadas por Tarran, um carregado de alto teor e poder desestruturalista, explosivo e aniquilador mesmo - o mapa do país contornado e preenchido, para que não reste a menor dúvida quanto à intenção, com balas. Balas? Sim, balas. Mas não das que o baleiro vende - são balas de armas de fogo, perdidas e achadas onde? Longe daqui, também, mas a toda hora aqui mesmo - no peito dos populares, que, embotados em sua consciência, batem nesse mesmo peito pra jurar pacifismo. Como explicar então que essas balas estejam matando mais que as das guerras convencionais, como a daquele insano caubói, por exemplo, que, para repetir a dose, usa as balas/bombas como álibi?

Data vênia, alguém fará a releitura dessa obra de Tarran, não apenas impressa ou plotada, mas concreta e tridimensional e com balas (dumdum) de verdade mesmo, incrustadas no peito do país e de seus matadores. E não apenas essas que, por sua semelhança com o fálico, nos remetem aos meninos de rua - chamados de pivetes. Que tal balas de AR 15 para retratar os homens dos palacetes cercados, eletrificados, alarmados, murados e segurados, que curiosamente se nutrem dessa lucrativa indústria de terror e violência?

Tarran tem os códigos, as senhas e a permissão.

Rio de Janeiro 2004

©Alexandros Papadopoulos Evremidis > escritor crítico > Email


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