"Cromutações" by César Romero.
"O paradigma popular erudito"

© Alexandros Papadopoulos Evremidis*

"Construo de forma erudita o gosto popular, o sentimento brasílico, os sinais do povo, que é raiz e direção. Busco uma pintura, como quem busca um Hino Nacional. Sou baiano, nordestino, brasileiro e universal."

A rigor, com uma declaração dramática e concisa como essa, ninguém mais precisava dizer nada sobre a obra de César Romero, já que ele magistralmente e em poucas e contundentes palavras fez sua profissão de fé, criando assim um hedge para blindá-lo e torná-lo imune a especulações e critiquices. Fosse ele poeta ou filósofo e não teria sido mais epigramático. E não fica só no dizer - mostra pontualmente as bases de sustentação, que é o desenvolvimento e a enlevação do real e do imaginário popular baiano e brasileiro a níveis espirituais e iconográficos raras vezes suspeitado por aqui onde a maioria se entrega à luxuriosa tarefa de copista, deixando a incômoda sensação do déjà vu.

César é autóctono e pioneiro e como tal mergulha no inconsciente coletivo nordestino, busca as raízes mais profundas, o leit-motif e os fetiches que movem o povo em suas crenças e crendices, seus folguedos, para se tornar intérprete de seu pathos e de seu pothos. E o faz com rigor técnico e estético, com as cores de sua infância resgatadas em sintonia fina. Os semas do terreiros do candomblé, das quermesses das igrejas e das festas de largo, perdem seu aspecto de enfeite decorativo para adquirir concretude plástica e irradiar seu próprio vocabulário semântico. Sim, porque César recusa a representação e o mimetismo. Ele quer a alma, a essência do seu objeto de desejo - o popular, quase sempre tachado de brega e vulgar. E aí Romero decifra seu código secreto e o tranfigura e consubstancia em erudito - paradigma para o mundo se cientificar do que a baiana arte tem. É quando o colonizado rompe os diques do colonialismo para se tornar universal. Livre!

Signos e cores - esse o binômio dominante. A exposição - "Cromutações" - é composta basicamente por enigmas - signos estáticos na forma mas dinâmicos na significação que ocupam toda a tela, criando uma leitura simbólica apenas decifrável por cânones picturescos, hieroglíficos - e por faixas emblemáticas, impregnadas de sinais, que surgem não se sabe de onde, serpenteiam, ora saíndo da tela para nos envolver, ora se perdendo no espaço, e que se multiplicam em divisões cululares para desaparecer misteriosamente. Do infinito ao infinito!

Espera-se de um artista sensível como César, que, tendo mostrado o lado luminoso da cultura do seu povo, exponha agora o lado obscuro, a dor e o sofrimento, as chagas desse mesmo povo que, ludibriado por seus governantes religiosos e seculares, só resiste porque é um forte, no dizer do outro.

"A característica mais notável no trabalho de César Romero é a sua capacidade de se apropriar dos símbolos da religiosidade e da criatividade popular, do fluxo inconsciente do povo brasileiro, e transformá-los numa partidura musical erudita, onde as formas adquirem uma fisionomia de informação vasta, e a estrutura cromática brasileira vai surgindo lentamente, de maneira extremamente sutil.

Esse trabalho de César Romero se diferencia da absoluta maioria do que é feito entre nós, porque ele procura, antes de qualquer outra coisa, um referencial que é imerso e emerge da cultura brasileira. É isso que confere a esse trabalho uma originalidade rara. E é um trabalho capaz, também, de mostrar o que nós podemos contribuir, num diálogo com as culturas de outros povos, por tornar uma particularidade nossa, alguma coisa que é especialmente brasileira em seu caráter universal.

Esse trabalho é seminal no Brasil, porque o artista pensa, recolhe, elabora, transforma, aquilo que é tão fundamental para nós, que foi criado por todos nós e está imerso na nossa maneira de viver. Todo esse sistema sinalético, essa estrutura de sinais, é nossa raiz, o sentimento do povo brasileiro, o sonho brasisleiro, por uma maneira única de viver, pensar e sentir." Jocob Klintowitz - crítico de arte que acaba de publicar o "Livro de Artista" do artista hieraticamente intitulado "CÉSAR ROMERO - A Escritura do Brasil". São 224 páginas de finíssimo acabamento e conteúdo.

Rio de Janeiro 2001

©Alexandros Papadopoulos Evremidis > escritor crítico > Email


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