Eduardo Costa, aka, Cadu


O trabalho desse jovem artista está ligado à pesquisa de sistemas e padrões de criação.
Relacionando idéias de tempo, índice, autoria e método, Cadu aplica cadeias sistêmicas a novos modos de abordar a paisagem, temporizando o espaço.
Através da visualização e ilustração de certos processos naturais, presentes porém ocultos, o artista pretende reforçar a interdependência do binômio homem/ambiente, distanciando-se da comum relação unilateral e predatória.
Entre a faísca da regra e o fazer repetido / FERNANDO COCCHIARALE

Entre o intelecto e a sensibilidade, o projeto e o resultado, a regra e a aplicação, Cadu concebe e realiza sua obra. Num caminho diverso ao do subjetivismo confessional predominante na produção contemporânea, ele cria cada trabalho a partir de uma regra explícita, qual a de um jogo, cujos resultados são sempre visuais. Em seguida aplica-a, já que tem sido seu único e principal jogador.

Sua poética caracteriza-se, pois, pela subordinação da ação plástica à idéia (ou conceito) e, portanto, pela convicção de que, no caso de seu trabalho, a criação deve ocorrer no limite entre a ideação de regras e a feitura: não no fazer puro e simples.

Desse ponto de vista a investigação de Cadu pode ser remetida, numa genealogia remota, à proposição de Leonardo da Vinci sobre a pintura como coisa mental.

Entretanto seu antecedente histórico mais próximo é o da busca pela desmaterialização da obra de arte levada a cabo pelos artistas conceituais de diversos países, na passagem das décadas de sessenta para a de setenta. O mote "arte como idéia, como idéia, como idéia" cunhado por Joseph Kosuth, artista maior dessa tendência, resume bem esse projeto histórico.

A arte conceitual não nos legou, como os Ismos modernistas, objetos formalizados, com sentido auto-referente, mas idéias materializadas numa objetivação mínima. Para os conceituais o fazer era redundante, já que a criação se dava quando vinha à luz a idéia da obra. Ainda assim, para que fossem transmissíveis, seus conceitos necessitavam, é claro, da formalização, mas sua lógica obedecia antes à da comunicação de idéias e conceitos, do que à da exibição pura e simples das propriedades poéticas e estéticas da forma plástica tomada como um fim em si mesma.

Ainda que consideremos essa afinidade genealógica, é essencial aqui ressalvar que a produção de Cadu nada tem de nostálgica ou extemporânea. O que é digno de nota é que essa genealogia possibilitou-lhe situar seu trabalho na contramão da mainstream das artes, hoje voltadas para a arte política, étnica, das minorias e até àquelas poéticas pessoais, qualificadas a partir da subjetividade do artista.

Diferentemente dessas tendências, ao restringir sua ação autoral ao arbítrio de regras e ao seu cumprimento, Cadu, entrega-se ao destino que elas traçaram, mas também aos seus acasos, aos desarranjos e às falhas do sistema criado. Atua, pois, em realidade, no intervalo entre a faísca da regra e a repetição quase mecânica do fazer que dela deriva.

A essa diretriz poética de fundo, soma-se outra, nem sempre presente em todos os trabalhos. Trata-se da difícil identificação dos métodos normativos de concepção e realização utilizados pelo artista, a partir dos resultados finais que obtém.

À primeira vista muitos de seus trabalhos podem parecer estritamente formais. Do resultado gestual dos desenhos da série Passagem de Inverno (feitos com luz solar e lente sobre papel vegetal); aos do Projeto Migrações (produzidos por um pêndulo com grafite maciço na sua extremidade inferior, montado numa caixa de tal modo que o lápis tocava o centro de um papel repousado sobre uma estrutura com base de madeira, sustentada por molas, e registrava graficamente qualquer percurso feito de carro, ônibus, etc. pré-determinado pelo artista); até aos trabalhos atuais como Swiss Made, os desenhos, pinturas e objetos de Cadu podem ser remetidos formalmente aos repertórios abstracionistas e construtivistas históricos.

A aparência formal desses trabalhos oculta as regras rigorosas que lhes fizeram vir à luz. É este o maior diferencial da obra de Cadu em relação à arte conceitual. Ele não tem por meta, como seus antecedentes genealógicos, a desmaterialização da arte, mas a investigação de outros tipos de materialização, sem o concurso da subjetividade criadora, já que a formalização é feita por sistemas propostos pelo artista. É pois uma estratégia de redução do fazer criativo ao âmbito da idéia, aprofundando a cisão histórica entre arte e artesanato, esboçada no Renascimento e consolidada ao final do século XVIII.

Dentre os trabalhos apresentados nesta exposição destacam-se, a despeito da alta qualidade de todos, Swiss Made, pela novidade do resultado cromático e Nefelibata, pela complexidade tecnológica do método. Há porém uma obra que aponta para um nova maneira de produzir, ainda menos subjetiva e com resultados visuais não apenas formais, mas icônicos. Trata-se de A Lontra, título extraído de texto de Walter Benjamin, sobre reminiscências das incursões de sua infância ao zoológico de Berlim.

Da janela de Cadu vê-se ao ar livre uma escada de cimento, cuja aridez tornou-se o reino de uma velha cadela chamada Paloma. A observação cotidiana dessa cena levou o artista a perceber que "Animais confinados em cativeiro tendem a apresentar comportamentos repetitivos de fácil percepção (...) E Paloma é um bom exemplo. Uma de suas rotinas é deitar-se ao topo de uma escada e permanecer ali em vigília por horas. Esta conduta foi observada durante um longo período até o momento da interseção entre dois ciclos distintos, seu fechado sistema de hábitos e uma chuva repentina, que possibilitaram a gravação de seu contorno sobre o chão. Um desenho efêmero sobre sua finitude (memento mori) e a de tudo o mais ao seu redor."

O intervalo entre o sistema Paloma e a casualidade da chuva permitiu a realização de três fotografias: a da cadela deitada, a de sua saída do topo da escada e, finalmente, a do registro da marca de seu corpo seco no campo úmido demarcado pela chuva.

No entanto há aqui duas novidades. O sistema parte dos hábitos e do comportamento de Paloma e não mais pelo que é proposto pelo artista. Além disso sua visualização só é possível graças à imagem técnica da fotografia. Mas o que talvez mais surpreenda nesta transformação é como ela deixa intacto o núcleo poético da obra de Cadu. Do "fechado sistema de hábitos" de Paloma, tão fechado quanto as regras de ação situadas à raiz de todos os trabalhos do artista, "à chuva repentina", fruto do acaso, nasceram não só estas imagens enigmáticas como o conjunto de seu trabalho.

Maio de 2005


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