| Barcellos |



Ápis - o olhar amoroso do artista

By Alexandros Papadopoulos Evremidis*

Faz exatos 8 dias (parecem 80) desde que, levado por Garcez, fui ver as pinturas desse maduro rapaz. De lá para cá, perdi a paz e não consegui sossegar, elas me assaltando a toda hora e, até, me acordando no meio da noite, exigindo que eu escrevesse algumas poucas linhas, para reter o tempo, registrar a comoção causada, solidificá-la e torná-la objetiva, não objetivo.

Não serei comedido, esbanjarei adjetivos - a arte dele é singela, honesta, sincera, despretensiosa. E sobretudo movente e comovente, de um lirismo avassalador. Pinta aquilo que ama e a todos seduz (pensa que aqui estou por acaso? se desde menino ela povoava e alimentava meus sonhos?) - as múltiplas formas e faces (e facetas) dessa tirana cidade-porné que chamam de Rio, só se for de paixões desenfreadas e, pour cause, sadomazoquisticamente demolidoras.

Falei em forma, mas não pense em mundos objetivos, em realismos. Barcellos, movido por um impressionismo tardio, e personalizado, a deforma e a re/forma, a derrete e a aeriza e, no limite da abstração, a devolve onírica, solta, livre. Uma visão e, mais, uma aparição - um thíon! O fazedor não se atém a desenhos nem cuida de contornos, sofre de um derrame. Aplica a cor como se por compassados jatos, patches cromáticos apostos por um polegar que deixa sua marca, sua digital de artista afirmativo, mas não alienado. Revela explicitamente a ciência das dores e das suas causas - as feridas abertas, os Elíseos maculados, tingidos de vermelho. Está ali, suas manchas choram e sangram umas para dentro das outras, se diluem e ao final tecem o tecido de que é feito o pathos. Fluentes, confluem e formam.

Entre outros instantes permanentes, há um de extrema delicadeza: barracos palafitados, amontoados em meio a imundas sombras imperceptivelmente translúcidas, uma estocada no exato ponto de nossa dramática neuralgia urbana - um escárnio para todo ser vivente, sumamente constrangedor para os animais e para os lírios.

Em outro momento emblemático, e sintomaticamente contrapontual, um menino, de rua, diz ele, mas não há rua, caminho não há, nem mesmo por fazer, viu, seu Machado? Não há apoio, nem há suporte. Não há amor, nem carinho. O que há? - imensa solidão. Desarraigado, recurvo sobre si, como um feto e como o próprio universo, o menino cheira cola, como se coca fosse, e pensa, como se a origem fosse daquele outro gigante pensador que está de visita no MAM, para nos guiar e co/ordenar e ajudar a refletir sobre os erros e a perda dos rumos. Sobre os desvios e as urgentes correções de trajetória.

Esse assustador e aterrorizador e, a um tempo, sedutor e encantador menino pensador é frágil, é lunático, é sonhador - uma esfarrapada estrela tragicamente solitária, envolta em etéreas e epíreas luminosidades alaranjadas, amareladas, douradas, uma fogueira suave, que lenta e seguramente o inflama e assa. O menino do Barcellos, esse nosso adorável menino cheirador de cola, é um ser solto no nada, abandonado aos dissabores de um criador cruel, consubstanciado em cada um de todos nós. Onde está o zóon politikón destes tristes trópicos?!

Sensível, Barcellos nos confronta com a nossa consciência embotada, embolorada, de tão egótica e egoísta, obtusa. Nem parece que esse rapaz passou a vida a suprir embarcações gregas e navegar por mares nunca antes - sempre. Aprendeu com os sábios e fez do azul sua cor Alfa, triste e melancólica, como o distante espaço, mas sem desesperança. Se a vida é um revolto "mare monstrum", nademos, nademos; uma noite chegaremos à praia, não para morrer, mas para acender fogueiras e, desesperadamente agarrados aos índios, esses outros meninos, dançar a dança do cachimbo aceso, ao som de Katchaturian e à imagem de Emil Nolde e Karel Appel.

Vê-se logo, Barcellos não é um profissional da pintura, nem é versado em técnicas; em compensação é intrinsecamente formatado em líquida estética e profunda humanidade - um humanista amante da vida e da humana filosofia. Derramadas as lágrimas e feita a cathársis, estaremos e seremos, como agora me sinto, livres. Curvei-me e paguei o devido tributo. Com imenso prazer convulsivo. Sim, porque ... para que arte e artistas se não para isso?

Rio de Janeiro 2004

©Alexandros Papadopoulos Evremidis > escritor crítico > Email

Fotos: divulgação


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